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Especial José Agrippino de Paula
José Agrippino de Paula:
o sui generis da literatura brasileira

Por Madson Hudson Moraes

Não são poucos os exemplos nos quais se conjugaram loucura com criatividade extrema. A História está cheia deles: Paul Gauguin, Vicent Van Gogh, Léon Tolstoi, Virginia Wolf, isso para nos determos em alguns. A tênue relação entre criatividade e patologia mental fertilizou diversos estudos e publicações, e sempre fomentou a seguinte discussão: até que ponto um influencia o outro? O fato toma outras dimensões, quando se trata de um bruxo – o bruxo do Embu das Artes.

Era assim como José Agrippino de Paula era conhecido em seus últimos anos. Não que isso fosse um insulto, longe disso. Mas a maneira como vivia recluso, metido em seus parangolés, dava essa sutil impressão. Parecia ter saído daquelas histórias do Capitão Caverna por conta de sua aparência: ‘parecia um homem das cavernas, com sua barba espessa e seu jeito pesado’, registrou Caetano Veloso no livro Verdade Tropical. Ou o próprio Agrippino encarnaria a versão tupiniquim do Cavernoso. Parecer é um verbo duvidoso e, por essa razão, vamos aos episódios: Agrippino nasceu em 13 de julho na São Paulo de 1937 e, naquele momento, o mundo iria ficar novamente de pernas para o ar - começava o Estado Novo de Vargas, a guerra Sino-Japonesa já havia começado e, algum tempo depois, o mundo inteiro entraria em guerra. Picasso pintaria Guernica, uma das obras-primas da história da arte, o cineasta Humberto Mauro lançaria O Descobrimento do Brasil, com trilha sonora de Villa-Lobos (filme duramente criticado pelo escritor Graciliano Ramos) e, no mesmo ano, nascia Hélio Oiticica, Philip Glass e morriam Noel Rosa e Maurice Ravel (quem nunca pensou na expressão bolero de Ravel mesmo saber o que significa?).

Ok, pessoas nascem e crescem, deixam alguma coisa enquanto memória coletiva. O escritor, dramaturgo e cineasta Agrippino de Paula não deixou apenas uma memória: deixou uma mitologia pop e própria que soa ainda atualíssima. Um folclore só seu, e disso podia se gabar. Quando morreu esquecido com seus quase 70 anos – e diagnosticado com esquizofrenia – comia arroz integral, passava os dias confinado no quarto e escrevia o que seria sua terceira obra, Os Favorecidos da Madame Estereofônica. Deixou por volta de 150 cadernos com escritos inéditos. Nos anos 60, se pudéssemos personificar alguém dentro das erupções artísticas que emergiam desse período aquariano, esse alguém seria Agrippino. Além de encenar peças e dirigir filmes, publicou dois livros que colocariam o beletrismo no chinelo: Lugar Público (1965) e PanAmérica (1967). O primeiro, assegurado por Carlos Heitor Cony como ‘o que de mais moderno existia em ficção’, e o segundo como um verdadeiro clássico underground. Mas o esquecido Agrippino não apenas revolucionou a linguagem dos livros: há traços nitidamente seus no cinema, na música e no teatro. Pode ser chamado, confortadamente, de o avant-garde das artes brasileiras. Hitler IIIº Mundo, por exemplo, realizado em 1968, é um marco dentro do cinema. Feito na total clandestinidade com uma câmera super-8 mm, trazia Ruth Escobar e um Jô Soares na pele de um samurai, sendo exibido somente anos depois. O mais curioso das filmagens é que, ao ser abordado por policiais civis, Agrippino convenceu a representarem a si mesmos no filme. Quem disse que o homem era louco, enganou. Era gênio e louco, numa concepção romanesca ao extremo.

Os dois? Sim, e um traço não comprometeria o outro ainda. Em 1969, escreveria, em parceria com a mulher Maria Esther Stocker, a peça Rito do Amor Selvagem e, no mesmo ano, dirigiu o show O Planeta dos Mutantes, consagrando de vez a banda de Rita Lee e companhia. Daí em diante, a vida de José Agrippino de Paula passou a ter elementos semelhantes a sua literatura: descontinuidade, fragmentação do real e o estancamento do tempo. Posteriormente à peça censurada, Agrippino seria estampado nas páginas do jornal Última Hora algemado e, por conta disso, o casal acabou indo à África. Mais descontinuidade: Agrippino e Maria Esther separam-se, ele toma o rumo a Londres, perde uma mala repleta de manuscritos e em Nova York experimenta, pela primeira vez, a mescalina. Quando retorna ao Brasil, Agrippino e Maria reatam e ele consolida seu folclore como o conhecemos na memória atual: metido em seu parangolé beatnik como guru de sua geração. Acaba tendo dois filhos, separa-se de vez e, a partir daí, seu contato consciente com o mundo real vai depurando-se suavemente. Os primeiros sintomas da esquizofrenia aparecem quando volta a morar com a mãe. Os delírios de Agrippino já não são exclusivos apenas das suas obras artísticas: os surtos são reais. Havia ocasiões em que Agrippino gritava que Antonio Carlos Magalhães – sim, ACM – queria matá-lo, ou então quando destruía TVs ou rádios sem motivos aparentes. O quadro clínico foi confirmado em 1981 e, desse momento em diante, sua obra e sua presença seria somente um fantasma vagando vivo pelo país.

Mas, assim como Sérgio Porto resgatou Cartola do ostracismo e o ajudou a encabeçar a categoria dos artistas brilhantes do país, com Agrippino de Paula não seria diferente. Independente de sua genialidade e loucura em estado simbiótico, havia ali um gene criador na ativa. O profeta da Tropicália, assim chamado por ser o precursor do Tropicalismo de Gil e Caetano, viveu no limbo literário até que, em 1988, o Museu da Imagem e do Som organizou uma retrospectiva de sua obra e resgatou do baú PanAmérica. Um segundo resgate foi feito em 2005, quando a psicanalista Miriam Chnaidermann encontrou Agrippino e se dispôs a fazer um filme sobre a vida dele. O escritor pediu somente algo: desejava uma câmera super-8, semelhante a das filmagens de Hitler IIIº Mundo e de alguns curtas-metragens. O equipamento acabou servindo de pretexto para que filmassem o próprio Agrippino em seu cotidiano, e o curta se chamou Passeio ao Recanto Silvestre (disponível no YouTube). Ele acabou não utilizando a câmera, mas essa atitude com a câmera super-8 reforça como Agrippino havia estacionado sua mente no passado: em posse do equipamento, ele talvez estivesse querendo que o relógio voltasse atrás. Outro detalhe importante: se você visualiza um homem agressivo e paranóico o tempo inteiro, esqueça. Agrippino era de uma calma franciscana e sua voz suave era daqueles professores sábios que ouvem muito e, quando falam, despertam outro universo. Deixou centenas de cadernos com manuscritos e toda a sua obra está sendo relançada, inclusive sendo publicada também na França.

Artistas são as antenas da raça, dizia Erza Pound. Agrippino, antena de toda uma geração, foi capaz de captar todas as movimentações de sua época e sintetizá-las em sua arte libertária. Acabou pagando um preço por estar à margem e quase foi esquecido quando desencarnou em 2007. Mas sua obra está presente e, aos poucos, é encarnada, assimilada, ingerida, gerida, querida e tantas as possíveis variações que a língua permite. Agrippino era bom em re-criar universos e esse, com certeza, continuará sendo seu maior mérito.




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