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Dossiê João Callegaro

O Pornógrafo
Direção: João Callegaro
Brasil, 1970.

Por Vlademir Lazo Correa

Em fontes diversas, não é raro encontrar O Pornógrafo classificado como filme policial. A qualificação não está completamente equivocada, em virtude de uma série de elementos que o ligam ao gênero, entretanto o que nesse sentido se sobressai no filme de João Callegaro é a condição de apaixonada homenagem aos clássicos do gênero, com citações que perpassam por quase toda a película, desde os primeiros minutos na abertura – em que, através de um virtuoso trabalho de edição, interpola passagens do protagonista Miguel Metralha (Stênio Garcia) com trechos de famosos filmes de gângsters estrelados por Edward G. Robinson, Paul Muni, James Cagney, Humphrey Bogart, etc. -, num procedimento que é retomado perto do final, fechando o círculo de ascensão e queda do personagem.

Miguel Metralha é um sujeito vulgar e ordinário que se move e se comporta durante a maior parte do tempo como que se estivesse dentro - e fazendo parte - de uma obra clássica característica do policial norte-americano. Isso provoca uma aura que contamina o longa por inteiro, em contraste com o tom de farsa e atmosfera tipicamente tupiniquim que percorre O Pornógrafo, e, dessa colisão, o seu fascínio brota naturalmente, com uma força que o transforma em um objeto audiovisual difícil de ser ignorado.

A verdade é que existem poucos filmes no cinema brasileiro com a vitalidade de O Pornógrafo. E muito se deve à empatia que a figura de Miguel Metralha suscita de maneira espontânea, e na cumplicidade de Callegaro com o seu protagonista, com o cineasta o tempo todo ao seu lado, seja nos momentos de maior tensão ou nos mais avacalhados (e nem sempre é possível diferenciar esses dois fluxos). Na soma desses movimentos que se entremeiam e se completam é que emergem os contornos que constituem a representação total de Miguel Metralha, um bon vivant que não gosta de muito esforço e consequentemente não se importa de logo no começo abandonar a redação jornalística na qual era empregado, para, em seguida, se tornar desenhista e escritor de histórias de revistinhas pornográficas de uma editora clandestina localizada no submundo da Boca do Lixo.

A tal editora é quase que pintada na tela como uma organização mafiosa, com gângsters de escritório e burocratas acomodados, mas não numa visão com um olhar negativo, e sim com benignidade e um bocado de ironia, com Miguel Metralha virando braço-direito do seu patrão (Sergio Hingst), e, com a morte deste, assumindo o comando e se tornando o chefão do recinto. Fica então às voltas com a concorrência pesada da verdadeira indústria do sexo que se firmou nos anos sessenta com o erotismo glamourizado e com um papel bem mais assimilado dentro da sociedade (cujo carro-chefe era revistas masculinas de peso e de larga escala como a Playboy), que esmagava as condições de trabalho e sobrevivência no mercado dos velhos pornógrafos e suas revistinhas de sacanagens confeccionadas com métodos artesanais e escassos recursos.

Miguel Metralha, o profeta do crime (como ele se autodenomina), peca por não seguir as regras e jogar sozinho, sem parceiros. Em sinal da modernidade dos novos tempos, e visando a maiores lucros, Miguel Metralha busca tornar a sua linha de produção mais explícita, o que o faz entrar em conflito com a fúria da moral hipócrita de Madame Rosália, uma matrona excêntrica que financia e protege a editora e se distrai na frente da TV cantando Meu Nome é Gal (a trilha sonora insólita ainda inclui o aproveitamento de canções na voz de Nelson Gonçalves e da valsa Danúbio Azul) e que aparece sempre com visual que remete diretamente a Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses, contando até com uma cena em que desce uma escada em espiral, numa das várias referencias cinéfilas dentro do filme de Callegaro.

Com uma narrativa frenética que por vezes faz pensar em uma decupagem de história em quadrinhos, O Pornógrafo é um filme que se esmera em arranjar soluções e sequências surpreendentes e extraordinárias. Há em cada plano uma nova invenção para cada tipo de cena, muitas vezes envolvendo as situações mais banais, como a do começo em que Miguel Metralha não evita coçar o nariz diante do seu chefe na redação, que se incomoda com o gesto e o expulsa da sala, ou a primeira vez em que o personagem acompanha uma filmagem de uma cena de sexo entre dois profissionais do estúdio. Ou mais adiante a inacreditável e hilária sequência em que Miguel recebe uma caixa misteriosa e embalada para presente, logo depois do livro elétrico que eletrocuta a personagem que o abre e o manuseia, e todo o final no parque de diversões, entre tantos outros momentos que poderiam ser citados à guisa de exemplos. Realizado com a colaboração de alguns dos maiores talentos do país naquela época (Jairo Ferreira como co-roteirista, Oswaldo de Oliveira na fotografia e Sylvio Renoldi na montagem), é até o momento a experiência única de João Callegaro na direção sola de um longa-metragem, em um filme que se mostra não apenas antenado com a maioria das novidades revolucionárias do cinema mundial daquele período, mas também em sintonia com muito do que de mais relevante se fez desde então até os dias de hoje.



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