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Dossiê João Callegaro

Entrevista com João Callegaro
Parte 1: Infância e Escola Superior de Cinema São Luis

Por Gabriel Carneiro
Fotos de Laís Clemente

Zingu!Como foi sua infância?

João Callegaro – Não que seja interessante. Talvez porque eu tenha nascido em Santa Catarina, numa família estrangeira, tirolesa, e alfabetizado em alemão. Nessa cidade, mais próxima, grande, que era Joaçaba, tinha um cara, meu colega de escola, que era completamente maluco. Ele fazia experiências químicas detonando algumas coisas, com 10, 12 anos de idade. Era o Rogério Sganzerla. Meu vizinho, meu colega. Na infância, eu me divertia. Foi culturalmente muito interessante, porque é perto da Argentina, de certa forma – uns 200 Km -, e o castelhano era muito falado. Os shows, principalmente, eram em língua espanhola, porque vinham de fora. O curioso na cidade era que passavam trens da Argentina. Então, além das frutas, que vinham de lá e paravam em Joaçaba, uma raridade, tinha a cultura argentina. A segunda língua das pessoas, não minha, era castelhano. Era tão maluco, que pegávamos rádios paraguaias – e uma coisa que ninguém sabe é que lá a língua oficial é o guarani, não o castelhano, e as rádios transmitiam em guarani. E a gente freqüentava a zona, que era muito interessante – tinha música, coisa e tal. Isso com 10, 12 anos de idade. O pessoal era maluco. O cinema era muito freqüentado, tanto que naquela época existiram até greves dos habitantes de Joaçaba pelo preço de entrada - eu nunca vi isso na minha vida. Foi muito interessante. O Rogério veio para São Paulo, eu vim alguns anos depois, e a infância ficou para lá.

Z – Você se interessava por outras formas de arte, ou só pelo cinema?

JC – Cinema e música, mas mais cinema. A música era muito forte, a latina/castelhana. Rogério, não, ia só ao cinema. E a loucura! - nós dois éramos completamente loucos. Fazíamos tudo o que era irreverente, em certo sentido - principalmente, explosões.

Z – Você assistia ao que nessa época?

JC – O filme que mais me marcou naquela época foi Trapézio, um filme sobre circo. A tela era cinemascope - e foi uma das grandes produções de cinesmascope -, sobre o trapézio de circo, que balançava de um lado para o outro. Se você se sentasse na primeira fila, ficava tonto. O que foi mais importante foi o cinema como espetáculo e as séries, como as de western. Desenho animado muito pouco. Que eu me lembre, era isso - e alguma coisa de cinema nacional, como as chanchadas da Atlântida. Em Joaçaba, marcante foi Trapézio, e um filme do Hitchcock, em que o cara é enterrado diversas vezes, O Terceiro Tiro, um belíssimo filme. Gostava bastante também, por incrível que pareça, dos filmes com a Libertad Lamarque, uma atriz mexicana – passavam filmes mexicanos.

Z – Você veio para São Paulo quando?

JC – Em 1960, com 15 anos de idade. A família se mudou para cá. O Rogério veio sozinho. Eu era mais dedicado ao esporte do que qualquer outra coisa. Encontrei o Rogério na rua, um dia, sem querer, fomos a casa dele, começamos a conversar. Ele morava numa pensão curiosa, que, entre outros moradores, tinha um cara que ficou muito famoso, o Luís Tripoli, que era fotógrafo. Era uma pensão na Rua Maria Antônia. Acabamos nos formando no bar do Zé, ao lado da Faculdade de Filosofia da USP. O Rogério começou com crítica de cinema, e eu fiquei empolgado. Nessa época, apareceu a Escola Superior de Cinema São Luís, que era uma loucura completa, a melhor faculdade de comunicação que o Brasil já teve. Todos os grandes intelectuais de São Paulo, com algumas exceções, deram aula lá. O Rogério não participou, ele já era crítico.

Z – Isso foi quando?

JC – Não lembro. Eu tinha uns 18 anos. Acho que 1965. Mas não me lembro. Foi uma época muito tumultuada, a gente vivia enchendo a cara. A Escola fechou depois de dois anos, a igreja fechou a escola – olha que coisa insana. Todo mundo perdeu o referencial. Imagina uma faculdade que de repente fecha – e fecha sem avisar ninguém. A gente foi lá e estava fechada. Funcionava aqui na Escola São Luís, na Av. Paulista, a faculdade de economia. O cara disse: “não, não tem mais escola”. Retruquei: ‘Como não tem mais escola?” “Esse ano não abriu”. Sem aviso, sem nada.

Z – Se primeiro filme foi feito na Escola?

JC – Teve o Alegria, que nunca terminei. Só esse. O curso era feito em estágios. A escola era muito atuante, fazíamos principalmente para nos conhecer, e também crítica para caramba, assistíamos filmes para caramba. A Cinemateca era uma extensão do curso. Vivíamos lá. Curiosamente – a mim choca muito -, quase todos os alunos da minha série, que foi a primeira, começaram a fazer cinema. Era uma coisa maluca. Não é que o pessoal fazia ou fez por diletantismo. Tinha gente estranhíssima: havia um cidadão, que me lembro, era um europeu, com 60 anos de idade, fabricante de bonés do Bom Retiro. Ele dizia que durante a vida inteira, quando morava não sei aonde da Europa, ele quis fazer cinema. Eu achava uma coisa insana. Foi o único que não fez, mas participou, ajudou a equipe.

Z – Por que seu curta Alegria nunca foi concluído?

JC – Não sei porquê. Até hoje tenho as fotos desse filme, encontrei por aí. Era um filme curioso. Surgiu de uma opinião que eu tenho até hoje: acho uma besteira total passar o final de semana na praia, porque São Paulo ficava vazia. A premissa era assim: quem ia para praia era burro. Acho até hoje, fim de semana no litoral é uma babaquice. Isso foi feito porque eu admirava um cineasta italiano chamado Dino Risi, que fez Aquele que Sabe Viver, um dos filmes que mais me marcaram, solto, livre, bonito. Eu fiz antes o Alegria, mas tem muito a ver, com um cara que sai para ir ao litoral. Nossa posição era anti-burguesa, nós achávamos que a burguesia era burra. A premissa, sem querer, era essa: andar com o rebanho da classe média era uma puta babaquice. Fazíamos tudo não sermos enquadrados no rebanho

Z – Você lia bastante os anarquistas?

JC – Bastante. Nós tínhamos dois amigos, o Roberto Piva, poeta brilhante, e o Cláudio Willer, o teórico do movimento beat. O Cláudio era muito amigo meu, de vez em quando o orientava sobre os recitais de poesia que ele dava na rua, em palanques. Para se ter idéia de nossa filosofia, na nossa turma, ninguém era homossexual, com exceção do Piva, que também era campeão sul-americano de alteres. Imagine o contra-senso. Nós íamos em festas, a gente saía com as menininhas e ele paquerava os meninos. Ele falava para a gente que éramos uns bichas. Dizia que macho mesmo era quem cantava homem. Ele era dialeticamente louco. Nossa visão era de que a realidade era muito chata, então íamos colher cogumelo em Itatiaia.

Z – Quem te dava aula?

JC – Todo mundo. Paulo Emílio de Salles Gomes, Roberto Santos... Quer dizer, não eram professores efetivos, lá funcionava de uma forma meio moderna, eram seminários cumpridos. Os professores fixos, que eu me lembre, começou com um pintor uruguaio, um dos fundadores da Escola, que era um louco de sanatório. O cara que fundou a Escola, o padre Lopes, era o cara mais demente que já existiu no mundo. Ele tinha uma proposta curiosa – era jesuíta -, de doutrinar pessoas. Ele queria fazer uma escola de cinema para que doutrinassem as pessoas para a religião Católica, olha que absurdo. Conseguiu colocar lá a maior turma de loucos que já teve em São Paulo. Loucos no bom sentido, mas todos eram malucos, todos. Os alunos então... Para te dar um exemplo, um amigo meu levou o cachorro para sala de aula, um fila, um cachorro desse tamanho [abre os braços espaçadamente], e queria que ele assistisse aula. Dizia que o cachorro era inteligente. Imagine o nível da escola. Na aula de ética, o professor era fixo, um cara estranhíssimo, cujo nome não me recordo. Anatol Rosenfeld, um dos maiores filósofos, deu aula lá. Fora os cineastas: Person, Roberto Santos, Capovilla. Na filosofia, o Rosenfeld, e o cunhado dele, um cidadão tcheco, gênio completo, mais de 10 livros publicados, famoso no mundo inteiro, era fixo lá, o Vilém Flusser. Era engraçado, pois Flusser tinha o Rosenfeld como grande inimigo. O Paulo Emílio deu aula lá, o Jean-Claude Bernadet, o Francisco Luis de Almeida Salles. Aulas no sentido de seminários. O Pierino Massenzi, cenógrafo da Vera Cruz, também. Tanta gente dava aula lá. Lembro que vieram uns cineastas russos para o Brasil, estranho para época, em plena ditadura, e foram lá dar palestrar para a gente. O padre Lopes era muito eclético quanto a essas coisas, deixava qualquer um dar aula. Era um cara, intelectualmente, bastante sólido. Tínhamos, por exemplo, psicologia das roupas. Acho importante entender como a escola funcionava. Tínhamos um bedel, William Pereira da Silva, que acabou sendo candidato a presidente da república nos anos 60. Acho que pelo Partido Municipal, algo assim. Ele acabou viajando muito para o exterior, porque ia como candidato de um país grande, como o Brasil, ia representar-nos.

Z – Quem foram os seus colegas?

JC – Na minha turma, o meu melhor amigo era o Carlão Reichenbach. Tinha o Fauzi Mansur, o Carlos Ebert, a Ana Carolina, o Paulo Rufino... Teve também aquele picareta, que fazia pornô e foi preso, filipino, o Juan Bajon. Foi em cana por corrupção de menores, um psicopata – ele era doente. Tinha época, que todos estavam fazendo filmes. Teve quem não fez cinema, como um cara que virou editorialista do Estadão. É muito difícil de lembrar, porque lá era muito complicado, pois não tínhamos aula como se tem hoje, era muito mais aberto. Na época que começou a Bossa Nova, havia um bar em São Paulo, o Johann Sebastian Bach, e o padre Lopes apareceu numa noite lá – numa época em que jamais se imaginaria que um padre saísse à noite. Ele tinha um fusca e, teoricamente, recuperava prostitutas. Nós achávamos que ele comia as moças. Ninguém sabe. Na esquina da faculdade, tinha um bar, o Vivieri, um local para namorar. Começamos a freqüentar, e começou a lotar de intelectuais da música. Foi por nossa causa. Como estávamos mais perto do bar, freqüentávamos à tarde, à noite. Era muito difícil precisar quem de fato estudava com a gente.

Z – O Carlão conta uma história de quando o Person levou o Mojica lá, dizendo que ele era um gênio, e foi rechaçado.

JC – Do Mojica, eu não me lembro. O Carlão não era da minha classe, era da posterior – se bem que tudo era meio misturado. Mas do Mojica não me lembro. Ele era um caso complicado. Filmava numa sinagoga abandonada. Eu fui quando ele estava fazendo o segundo filme do Zé do Caixão, Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver, e também achei uma merda total. Eu achava maluco, mas achar que tinha alguma coisa a mais... Tenho que ser franco, nunca achei o Mojica um gênio. Quem achava era o Rogério, o Carlão de certa forma. O Mojica era mais um amigo. Tanto que nos convidou para a fazer um filme, Ritual dos Sádicos. Muito tempo depois, vi que tinha o seu brilho. Nesse ponto, sou muito cético. O pessoal achava o Candeias um gênio, eu achei que ele fez um filme maravilhoso, fantástico, brilhante, que era A Margem, e o resto uma merda total. Um blefe. Um cara semi-analfabeto que disse que não gostava – e nunca me esqueço – de um desses autores de telenovela, que veio de uma formação literária boa. Dizia: “como esse cara que escreve mal para caralho vai fazer uma novela?” Eu pensei: “Pô, esse cara é analfabeto, nunca deve ter lido, e fica metendo pau no outro.” Sou meio cético.

Z – Depois você fez O Suspense.

JC – É. Eu adorava Hitchcock. Comecei a fazer comerciais numa produtora muito pequena. Era curiosa, porque produziu o primeiro longa-metragem colorido de animação do Brasil, chamado Piconzé, feito pelo japonês Ypê Nakashima. Eles tinham um equipamento sobrando, e eu tinha um livro do François Truffaut, chamado Le cinema selòn Hitchcock, que era maravilhoso. Pequei uma câmera da produtora, uma lente de óculos para aproximar - pois as fotos eram pequenininhas -, e fiz um table-top, de cinco minutos, uma animação com fotos, contando a trajetória do Hitchcock. Tinha umas brincadeiras no meio, e ficou muito interessante, tanto que eu mostrei para o Paulo Emílio. Ele disse (imita a voz dele): “Eu gostei, só que eu não gosto de Hitchcock”. (risos) Não sei como, mas o Itamaraty mandou uma cópia para o Hitchcock, e ele gostou para caramba.

Parte 2



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