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Dossiê João Callegaro

Entrevista com João Callegaro
Parte 3: Boca do Lixo e O Pornógrafo

Por Gabriel Carneiro
Fotos de Laís Clemente

Zingu! – Você freqüentava o bar Costa do Sol?

João Callegaro – Nossa, diariamente, de manhã até a noite. Por isso eu estou com cirrose hepática. Costa do Sol? Não, eu ia muito no Soberano. O Costa do Sol, aquele na Sete de Abril, ia de vez em quando. Ia mais naquele do lado do museu, do Clube dos Artistas, porque eu era amigo do Francisco de Almeida Salles.

Z – Você foi parar como na Boca do Lixo?

JC – Todos nós fomos para a Boca do Lixo. As Libertinas foi comercializado lá, conseguimos exibi-lo na Boca do Lixo. Freqüentávamos diariamente lá, depois dos anos da Escola São Luis. Foi quando começamos com As Libertinas. É difícil entender, mas a Boca do Lixo, muito mais que a Vera Cruz e a Atlântida, era uma efervescência de cinema. Então ia lá desde o Khouri até o pessoal do Rio (menos o Glauber), todo mundo ia na Boca. Depois das 10h da manhã, ficava todo mundo na rua conversando, e surgia uns filmes. O sistema era mais barato, então sugeria-se um filme e todo mundo topava fazer. Foi o meu caso. Eu estava no escritório de um japonês maluco, Massao Ono, que era, inclusive, editor do Roberto Piva, completamente maluco. O Massao tinha produzido um filme histórico, Riacho de Sangue. Ele tinha um escritório e como a gente ficava o dia inteiro enchendo a cara e não fazendo nada, íamos lá. Um dia vi na mesa dele que o Shohei Imamura tinha feito um filme chamado The Pornographer: Introduction to Anthropology, cuja tradução literal é “O Pornógrafo: Introdução à Antropologia”, era um filme sério. Falei para o Massao que ia roubar o nome O Pornógrafo, porque o filme não ia passar aqui mesmo. Roubei o nome e saí falando para as pessoas que ia fazer um filme chamado O Pornógrafo. Aí eles perguntavam sobre o que era o filme. “Ah, não sei.” Registrei o nome para começar a fazer o filme. Comecei a escrever, tinha convidado o Jairo Ferreira para escrever comigo.

Z – O Jairo você conheceu na Boca?

JC – O Jairo era amigo do Carlão. Ele era crítico de cinema do São Paulo Shimbum, e freqüentava muito o cinema japonês. Ele era ligado à poesia, ao pessoal do Cineclube Bandeirantes, a uns amigos do Calão estranhíssimos. O Jairo era boca de fumo, mas era um rapaz inteligente, muito boa gente. Isso tudo ocorreu no Soberano. O soberano era fantástico. Você viu as fotos do livro do Candeias? Eu também tenho um monte de fotos de lá, passei até para a FAAP, para uma exposição. Todo mundo que você imaginar estava lá. Tanto que o Jayminho Monjardim começou lá, como assistente do assistente. As coisas eram muito rápidas. Eram revolucionárias, porque aceleravam as mudanças. Um amigo nosso, que virou mendigo e morreu, que foi amigo e secretário da Maysa – era homossexual e apaixonado por ela -, era da Escola, começou a encher a cara e virou mendigo. Vinha de uma família rica. Não me lembro de seu nome. As coisas eram muito rápidas, fluentes, espontâneas. Não tinha nada muito sério. O Galante uma vez encontrou o Rogério: “ah, você está precisando de grana? Eu te dou um carro para ir ao Rio de Janeiro e mais um dinheiro, se você me der uma parte de A Mulher de Todos”. Era muito precário, muita picaretagem. Por isso deixei de fazer longas. Depois que a censura liberou O Pornógrafo, foi apreendido de novo. Foi bem de grana, mas roubaram muito. Ninguém sobrevivia de cinema. O Carlão era de família mais rica, por isso. Tanto que o pessoal apelou para o pornô, e ganhou muito dinheiro. Minha proposta nunca foi ganhar dinheiro. Nunca fiz filme com intenção de lucrar, o Lima também não, o Carlão também não. O resto era diferente. O Fauzi, por exemplo, tinha essa proposta. O Khouri, apesar de ser um cara sério, também. Ele tinha consciência de que precisava fazer dinheiro, ele vivia disso. Ele tinha uma visão que eu não concordava - elitizada, européia -, mas era um cara sério. Assim como o Rubem Biáfora, nos três filmes que fez, era um cara sério. Aliás, Biáfora era um cara de quem eu nunca poderia falar mal na vida, porque foi quem mais me tratou bem no cinema. Tudo que eu fazia ele criticava e falava que era bom. Ele gostava do estilo de coisa que eu fazia. Tanto que ele colocou O Pornógrafo lá no alto. Era um cara fiel, que tinha uma visão reacionária, mas gostava de alguns filmes. Gostava d’O Bandido [da Luz Vermelha]. Muito melhor que os outros críticos da época. Por exemplo, o Leon Cakoff falaria bem de um filme porque era amigo do cara. O Biáfora não, ele ficava amigo se gostasse do filme.

Z – Você gostava dos filmes do Biáfora?

JC – Não. O Quarto é sub-Khouri, é um Khouri mal-feito. Horrível. Eu não gostava de nada.

Z – Como você foi trabalhar com o Galante e o Palácios?

JC – Começou com As Libertinas. Aí para fazer O Pornógrafo eu chamei uns caras, amigos meus. O Oswaldo de Oliveira para fotografar, o Sylvio Renoldi para montar – o Renoldi era um dos melhores montadores do Brasil. Eles entraram como sócios do filme e o Sylvio quis chamar o Galante para produzir, porque ele entrava com uma parte. A sociedade do filme era eu, o Sylvio, o Oswaldo, o namorado dele que era motorista de táxi, e o Galante. O Palácios era sócio do Galante, mas este que era o produtor executivo.

Z – Como era trabalhar com o Galante?

JC – Para trabalhar era bom, porque ele dava liberdade total, e um pouco de grana. O problema, depois, era receber. Mas era bom, não era ruim não. Era pouco dinheiro, mas ele bancava. Nunca pressionou, nem nada. O problema sempre foi receber. Pegava o dinheiro e fazia outro filme. Também, ficou rico. Aquilo era uma bola de neve, por isso abandonei o cinema.

Z – Como era trabalhar com o Oswaldo de Oliveira?

JC – Perfeito. Quando montei uma produtora de comerciais, era ele quem fotografava. O problema dele era que ele bebia 24 horas por dia. Chegava um momento que ele não conseguia fazer câmera. Um grande problema do cinema nacional, em que o diretor de fotografia é câmera. Uma característica que tem até hoje e veio do neo-realismo italiano. O Oswaldo era perfeito, um grande fotógrafo. Entendia muito de cinema, tanto que fez um montão de filmes. Fez filmes sertanejos muito bons, como Sertão em Festa, muito acima da média.

Z – E com o Sylvio Renoldi?

JC – O Sylvio era perfeito. Ele foi o maior montador que já existiu no Brasil. Conhecia tudo, tinha uma paciência total, simpaticíssimo, amigo. Era um cara curioso, porque abstêmio, todo mundo enchia a cara e ele era o cara sério.

Z – E o Meliande?

JC – Ele estava no começo de carreira. Levei-o para fazer uns comerciais. Ele era o assistente do Oswaldo de Oliveira, o Carcaça. Era um grande assistente, um dos melhores que já vi. Depois virou um fotógrafo bom, e depois ficou prepotente. Era um cara semi-analfabeto. Ele veio todo fudido do Rio e apareceu lá na Boca. O Oswaldo acolheu ele, o Galante o deixou morar no escritório – morava no sofá. Nossa, era um excelente assistente, e um bom fotógrafo. Ele foi muito bom, tanto que foi para a Globo, orientar a iluminação lá, no Rio, só que o sucesso subiu um pouco, virou diretor, fez pornô e um monte de porcaria.

Z – Como foi a realização de O Pornógrafo?

JC – Foi tranqüila. Eu tinha o roteiro. Havia improvisações, mas eu seguia o roteiro. O que eu pretendi era fazer improvisações de texto, ler falas de ator. Foi um problema na dublagem, porque a nossa continuista, que era teoricamente a mulher do Oswaldo – era um triângulo: o Oswaldo, o Serginho e a Maria -, era muito gente boa, mas não escrevia muito, e era melhor continuista de situações, então teve problemas de texto. A filmagem foi num tempo médio, de 3, 4 semanas. Também, o negativo era escasso, mas não chegava a ser paupérrimo. O Oswaldo e o Sylvio eram sócios, e eles mandavam para o Galante também. Foi um esquema bom, só que nenhum de nós ganhou dinheiro – o que era importante, eu precisava. Eu conhecia muita gente ligada à publicidade, então O Pornógrafo tem dois cartazes muito bons – um feito pelo Trípoli, fotógrafo, e outro desenhado por um cara do Rio, que era do Pasquim, muito bom. Como eu tinha noção de publicidade, o trailer de O Pornógrafo era, também, muito bom, chamativo na época.

Z – Por que todas as locações eram na Boca?

JC – Porque o filme era sobre a Boca. Se passa no escritório do Galante. A proposta era de um bandido na Boca, porque era muito eclética. Tinham os escritórios de cinema e os puteiros, um do lado do outro. Mas o puteiro era curioso. Não era que a mulherada ia para a cama, era sei lá, com uma portinha de bar; as donas dos puteiros eram amigas nossas, as meninas também – meninas não, porque eram todas coroas. Tinha os bandidinhos também. Para você ter uma idéia do nível de loucura que era, O Pornógrafo tem uma cena que tem um tiro. O produtor falou: “onde eu vou achar um revólver?” Falou assim mesmo, meio alto. Aí um cara lá atrás falou: “eu empresto, eu empresto”. Juro mesmo. “Sou delegado, mas pode pegar aqui, leva lá; você me entrega quando você quiser.” O irmão do Serafim, dono do Soberano, morreu por causa de drogas – ah, não morreu não, ficou aleijado, só. Era traficante. Esse seria personagem interessante para aquele O Rei da Boca. Aliás, vocês viram o curta sobre o Soberano [intitulado Soberano, de Kiko Mollica e Ana Paula Orlandi]? Queria matar os caras, é uma bosta, sobre um assunto bom daqueles; é ruim, ruim, o cara não tinha idéia do que estava fazendo. O Soberano foi um lugar curiosíssimo. De repente, você encontrava numa mesa o Francisco Luis de Almeida Salles, de uma tradicional família e diplomata, tomando rabo de galo com o Oswaldo de Oliveira.

Z – Como surgiu a idéia do argumento do longa?

JC – Eu roubei o título do Imamura. Comecei a pensar. Eu tinha paixão total pela interpretação do Stênio Garcia, especialmente numa peça chamada Cemitério de Automóveis, do Fernando Arrabal – Cemitério de Automóveis foi e é até hoje um dos maiores textos ficcionais que se e tem de automóveis. Era uma peça inteira feita em andaimes; sabe aqueles canos tubulares, usados em obras? O Stênio ficava durante uma hora e meia pendurado como um macaco, andando de um lado para o outro, interpretando o texto. Fiquei impressionado com a interpretação do cara e a mulher dele também era amiga nossa. Então escrevi o personagem para o Stênio.

Z – Por que essa referência aos quadrinhos e ao Carlos Zéfiro?


JC – Proposital, porque o Carlos Zéfiro foi muito importante. Quem que era o maior pornógrafo? O Carlos Zéfiro, que era fantástico. Agora foi reeditada a coleção completa. Está no Rio, encadernada, tipo almanaque. Nossa, é muito bom. A idéia era a seguinte, sempre a mesma: Zéfiro era sacanagem mesmo, mas o que irritava a gente era que a burguesia se apoderava de tudo. A editora Abril começou a comer todo mundo, a lançar revistas como Saúde, que no fundo eram sacanagens puras, para mostrar mulher pelada, como a Ele e Ela. Acabaram até com a essência do pornô nacional, que era curioso, tradicional, com essas porcarias industrializadas, com as revista importadas. A idéia era: por que acabar com o pouco que tinha até nessa área? Eles acabaram com tudo, e até com o pornô. Isso é um absurdo, pensar que a cultura militar, que era teoricamente rígida, acabou até com isso, e em troca disso, colocou um imperialismo da leitura. Acabou com tudo. Se fosse fazer um filme sobre um pornógrafo, tinha que fazer com o Zéfiro.

Z – Você lia bastante o Zéfiro?

JC – Todo mundo lia. Eu lia desde menino. O Zéfiro era um fenômeno editorial. Uma vez a Wilza Carla falou que ele foi o ABC da formação sexual do brasileiro. Ele foi muito importante. Em todo o Brasil tinha. A origem daquilo era o cordel, um folhetim tipo o cordel. Se pensar bem, Os Catecismos foram a origem do pornô da Boca – o pornô softcore que teve no início, a pornochanchada, teve muito a ver com o Zéfiro, porque todo mundo lia. Você vê? O Silvio de Abreu, autor de novelas da Globo, começou na Boca. Ele fez um filme que eu recomendo veemente que é O Homem de Itu.

Z – Mas esse filme é do Miziara.


JC – Do Miziara? Não é do Silvio de Abreu? É muito bom o filme. O Miziara era analfabeto, mas o filme era muito bom. Muito engraçado. Nossa, não é do Silvio de Abreu? Nossa, todo esse tempo me enganei. Aquele filme é muito inteligente. Enfim, mas está tudo entrelaçado com Zéfiro. É engraçado pensar que a formação de um cara vem de um folheto de sacanagem. É demais, não? O Piva reclamava que só tinha homem e mulher. Ele dizia que ia falar com Carlos Zéfiro. “Mas quem é Carlos Zéfiro?”, e ele respondia: “Não sei, mas vou descobrir e falar com ele”. (risos)

Z – Daí que veio a idéia de o pornógrafo do filme passar a fazer quadrinhos homossexuais?


JC – A idéia era essa. Ele, no fundo, sem querer, era o Carlos Zéfiro, um editor do Carlos Zéfiro. Naquela época, em 60 e pouco, começou a efervescência da história em quadrinhos. Eu me lembro de quando era criança, com 10 anos de idade, ainda em Joaçaba/SC, a gente era pobre, e trocava revistas na porta do cinema. Domingo, na matinê, víamos o filme e, na saída, trocávamos gibi. É muito difícil dissociar o cinema dos quadrinhos, principalmente no interior. N’O Bandido, por exemplo, vê-se uma porção de referência a quadrinhos. A nossa formação foi basicamente de cinema e quadrinhos. E porque a gente gostava do cinema americano? Porque no interior da região sul só passava cinema mexicano e americano, não o europeu. A nossa família era de origem austríaca, tirolesa, que falava alemão, mas mesmo assim. A dinâmica entre eu e o Jairo era a seguinte: eu tinha as idéias e ele colocava no papel; o Jairo entrava com a visão lisérgica do negócio. Ele tinha uma formação cultural melhor do que a minha, no sentido jornalístico. O Jairo era muito engraçado.

Z – Por que brincar com os filmes americanos de máfia?

JC – Eu adorava o cinema americano e era um filme de gângster. Um dia o Sylvio Renoldi pegou no consulado americano um documentário sobre personagens de gângsters. Ele dizia que um dia apareceu lá. O consulado americano me deu os discos de trilha sonora de jazz daquela época. Olha que absurdo. Milicos no poder e funcionários americanos que eram liberais. Não sei como, mas o Sylvio tinha um rolo com os grandes personagens de gângsters. Aí eu falei para o Stênio assistir esse filme, e no filme, quando ele olha no espelho – com o figurino a caráter, já previsto no roteiro -, ele faz o gângster. A caracterização foi encaixada depois. Era tudo uma grande colagem. Tanto que naquela cena, quando ele morre num parque de diversão, aquilo é do filme do Orson Welles, A Dama de Shanghai. De referências não tem nada de nacional, só de filme americano. Senão não é referência, é plágio.

Z – De onde vem o caráter irreverente e farsesco de O Pornógrafo?

JC – O uso disso talvez tenha a ver com o Rogério [Sganzerla]. A visão do Rogério era cínica, tanto que tinha sugerido colocar o nome da rádio em O Bandido como a rádio Eldolar – ao invés de Eldorado. A única forma de dizer uma coisa na ditadura era farsescamente. Tem um documentário de música, do Carlos Alberto Ebert, que passou na TV a cabo, fala uma coisa curiosa. Todo mundo olha para o governo militar e fala que todo mundo era burro, não é verdade. Tinha uns censores ligados ao Golbery [do Couto e Silva] que eram muito inteligentes. Porque? Eles nunca encanaram com o Chico Buarque quando ele fez um Operário em Construção, mas encanavam com o Caetano Veloso e com o Gilberto Gil, pois eles sabiam que a farsa, a brincadeira, a irreverência, era muito mais cáustica que a esquerda tradicional. Achávamos que agrediríamos mais se fizéssemos tudo na brincadeira ao invés de um filme sério. O Roberto Santos era PC e fazia filmes sérios, pesados, e a gente achava que não. Era aquela idéia do Piva, de que um cara queimando fumo era muito mais revolucionário do que um cara fazendo texto num jornal de esquerda. De uma certa forma, ele tinha razão. Aquela porra-louquice da Tropicália foi muito mais importante do que o resto. Eles foram em cana, foram exilados. Todo mundo levou um susto. Perceberam que era muito mais importante, muito mais agressivo, fazer um negócio maluco desses do que o Vandré. Estranho, não? Se eu fosse milico, eu encanaria o Vandré, não o Gil. Pensando fascistamente, mas eles não. A idéia de O Pornógrafo é exatamente essa, de driblar a censura. Também não havia o menor motivo fazer um filme sério, porque não era um assunto sério. Tinha idéia de farsa, o capital acabando com a cultura regional. Só isso.
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