html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Lançamentos
Por Vlademir Lazo Correa


Gran Torino
Direção: Clint Eastwood
EUA, 2008.

A esta altura a maioria já deve ter visto Gran Torino, que, como quase todo filme recente de Clint Eastwood, é uma experiência praticamente transcendental e dilacerante. Gran Torino é uma obra-prima que vai nos conquistando aos poucos, bem lentamente, até nos arrebatar. Um filme que se encaminha para um acerto de contas, não apenas do personagem, mas também de uma faceta da carreira do ator-diretor.

Há muito tempo que Clint não precisa provar mais nada a ninguém, seu talento e longevidade já são incontestáveis e converteram até os seus inimigos mais ferrenhos do passado, mas em Gran Torino ele aborda questões que foram centrais em sua obra e na de outros colegas de sua geração em um determinado período do cinema norte-americano: o tema da justiça com as próprias mãos, da violência cada vez mais crescente que de uma forma ou outra tem que ser combatida, mas que só gera mais violência, a opressão dos marginais sobre a gente humilde e correta das comunidades pobres, etc (e o papel dos imigrantes estrangeiros dentro dessas comunidades estadunidenses, e o modo como interagem e convivem com os americanos que estão ali há mais tempo).

Essas questões durante muito tempo serviram como pano de fundo para filmes até certo ponto oportunistas (muitos deles excelentes, não se pode negar), que tratavam as coisas apenas na superfície, no maior dos maniqueísmos, apenas para servir como um pretexto para a catarse da platéia. Esses filmes até poderiam ser ótimos, mas sempre se esperou por algo como Gran Torino, que é o avesso de tudo aquilo, ao mesmo tempo que lidando com os mesmos temas. Uma reflexão seriíssima sobre essas questões sempre atuais e cada vez mais presentes em nosso mundo, e que já vem sendo levantada de modo mais consistente na obra de Clint em filmes como Sobre Meninos e Lobos. O diferencial é que Gran Torino tem Clint repetindo o personagem o qual todas as circunstâncias o encaminham para mais uma vez cumprir o papel de vingador.

Quem nos conduz pelos labirintos de um bairro decadente da periferia de Detroit é Walt Kowalski, um veterano de guerra e de muitas batalhas diárias perdidas. O nosso “herói”, no melhor sentido da tragédia grega, é alguém cansado e desiludido, primeiro com a própria família, com quem mantém uma relação desgastada por um circulo vicioso de conflitos e desinteresses mútuos (um pouco por culpa do próprio protagonista, nem sempre simpático no contato com os filhos). Também pelo predomínio de imigrantes asiáticos que, com o passar dos anos, se estabelecem no seu antigo bairro - o que, aos seus olhos, descaracteriza e macula o lugar em que sempre viveu e que é o seu chão -, destilando aos estrangeiros um ódio selvagem e um rancor acumulado pelo cenário de barbárie nos tortuosos caminhos das ruas do bairro, que se transformou num campo de batalha de gangues e grupos fechados cuja convivência se impõe às custas da brutalidade. No entanto, o que mais exaspera Kowalski é sobretudo a falta de um código de honra que as novas gerações (incluindo a dos seus filhos de meia-idade) teimam em ignorar e sepultar, um conjunto de ética e valores que parece não mais existir. Tudo isso pode indicar uma visão estritamente conservadora do roteiro e do personagem, mas o filme transcende esse ponto de vista com as suas qualidades essencialmente humanas e cinematográficas. Até porque o filme vai tomando outros rumos com a aproximação de Kowalski com o adolescente Thao, seu vizinho, que tentara roubar de sua garagem um Gran Torino 1972 (que Kowalski conserva como relíquia), por pressão da gangue Hmong que perturba a vizinhança. Aos poucos, o garoto vai se tornando seu amigo e quase filho adotivo, transferindo um bocado dos conceitos de honra e ética para a formação do caráter do rapaz, enquanto a marcha dos acontecimentos prossegue de maneira quase intacta numa época em que Kowalski está com a idade de perdurar as armas, no que deveria ser o epílogo sereno de uma existência conturbada.

O seu resquício emocional, entretanto, desmorona quando um ataque dos delinqüentes atinge os seus amigos vizinhos, especialmente a irmã de Thao (que Kowalski em outra ocasião salvara do assédio dos marginais), estuprada e agredida, para desespero e culpa de Kowalski, cuja atitude de intimidar o líder da gangue para que deixassem de importunar Thao gerou a reação extrema da qual a garota foi a principal vitima. É então que se acentua o processo de desconstrução da persona cinematográfica de Clint Eastwood, de todos os papéis de durão que interpretou em seus faroestes e filmes policiais, num processo de reavaliação de sua figura mitológica dentro das novas realidades que se apresentam como incontornáveis nesse começo de milênio (e se o filme é acusado por muitos de se utilizar de determinados clichês, é para que esses sirvam de matéria-prima para o mesmo processo de auto-avaliação do personagem, bem como de síntese da carreira do ator-diretor). Um mundo sem heróis e em estado de sitio, com corpos e mitos em grau de exaustão e dissolução, mas que não nega uma luz no fim do túnel com gestos de sacrifício e autoflagelação.

Ao final, o Walt Kowalski, personagem de Eastwood em Gran Torino, talvez não se importe apenas se vai salvar ou ferir o próximo, o que também o move é seguir o seu destino, o seu caminho (ou o que for), o que o liga a uma lógica individualista que é uma das características máximas do cinema clássico americano, sobretudo o faroeste (o que faz pensar em John Ford e filmes como Rastros de Ódio). É assim que Gran Torino - junto com O Mundo Perfeito, Honkytonk Man, Josey Wales, Menina de Ouro, O Cavaleiro Solitário, e especialmente Os Imperdoáveis - confirma Eastwood como sucessor deste cinema que preza determinado tipo de “herói” (mesmo que por vias tortas) dentro de uma narrativa clássica que dinamiza a ação e o trabalho discreto de câmera, com efeitos puramente cinematográficos. Por que da mesma forma que o recente filme de Michael Mann, Inimigos Públicos, o cinema de Eastwood não se deixa poluir pelos artifícios da estética do videoclipe ou do videogame, nem da televisão ou da publicidade. É cinema no que há de mais puro desta linguagem e em sua essência, os dois (o do Clint e o do Mann) são obras da mesma estirpe, oásis dentro da mesma seara cinematográfica.



<< Capa