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Especial Nelson Rodrigues no Cinema

Vestido de Noiva
Direção: Joffre Rodrigues
Brasil, 2006.

Por João Pires Neto

Mesmo que inevitável, comparar o cinema com o teatro parece sempre uma atitude um tanto desonesta, já que, apesar das muitas semelhanças, são formas artísticas distintas. A relação entre a arte dramática e a cinematográfica sempre foi polêmica e muito se falou sobre o fim do teatro com a crescente massificação do cinema. Por outro lado, rotulou-se o teatro como arte nobre e o cinema como produto descartável.

No entanto, no caso específico do filme Vestido de Noiva, a comparação é natural e até mesmo necessária. O texto original, escrito pelo incansável Nelson Rodrigues, foi imortalizado pela famosa e revolucionária montagem realizada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1943. Sob a direção do dramaturgo polonês Ziembinski, a peça é considerada hoje o marco inicial da chamada fase moderna do teatro brasileiro. Curiosamente, a adaptação incorporava técnicas semelhantes às utilizadas no cinema, como a interação da iluminação em um nível de detalhismo até então desconhecido (que sombreava os contornos do espaço cênico criando uma plasticidade inédita nos palcos), a concepção inovadora do cenário capaz de revelar níveis temporais diferentes, que representavam o passado, o presente e as alucinações da personagem Alaíde (interpretada pela atriz Lina Grey). O espetáculo canonizado de Ziembinski efetivou-se como um referente quando se fala em Vestido de Noiva, tornando o texto mais famoso de Nelson Rodrigues quase intocável.

Sessenta e três anos depois, Vestido de Noiva seria levado aos cinemas por ninguém menos que Joffre Rodrigues. O filho mais velho do escritor Nelson Rodrigues aceitaria o desafio quase impossível de converter para a linguagem cinematográfica um dos textos mais emblemáticos e representativos da história da dramaturgia brasileira. A questão principal não seria superar a montagem de 1943, mas sim adaptar de forma independente e ao mesmo tempo “respeitosa” à criação do próprio pai, e ainda convencer a crítica e o público.

Convenientemente ou não, Joffre Rodrigues dedicou boa parte de sua trajetória cinematográfica em produções inspiradas na obra do pai. Iniciou sua carreira em 1963, produzindo Bonitinha, mas Ordinária (dirigido por J. P. Carvalho, com Jece Valadão e Odete Lara). Produziu um ano depois o sucesso A Falecida, com Fernanda Montenegro e direção de Leon Hirszman. Em 1989, foi a vez do longa-metragem que é considerado por muitos a melhor adaptação de Nelson Rodrigues para os cinemas: Boca de Ouro, dirigido por Walter Avancini.

No entanto, o projeto mais ambicioso e sofisticado do cineasta foi Vestido de Noiva, no qual além de produzir, assumiu também direção e o roteiro. A complexidade estrutural do texto de Nelson Rodrigues foi transposta fielmente para o filme: espaço, tempo e personagens se cruzam nas memórias e alucinações da personagem central Alaíde.

Partindo desta forma fragmentada de construção, em que os amores e desafetos da personagem se fundem, conhecemos o drama da personagem, que após ser atropelada, relembra situações de sua vida desde que começou a ler o diário da cafetina Madame Clessi. Nestas memórias, ora falsas, ora verdadeiras, não são apenas os desejos, as traições e as mágoas da personagem que se confundem, mas também acontecimentos do trágico passado da cafetina.

Quando estreou nos cinemas em 2006, como era de se esperar, Vestido de Noiva recebeu críticas divergentes, algumas elogiando a seriedade e o empenho de Joffre Rodrigues, outros afirmando que o filme era teatral demais, que não conseguia a sua autonomia como cinema puro. O problema é que Vestido de Noiva é um filme construído quase todo em cima de diálogos. As lembranças de Alaíde são reconstituídas através de um diálogo com a Madame Clessi, que desperta flashbacks e devaneios que encadeiam outros diálogos. Este embate de vozes da protagonista, que acontece num universo totalmente subjetivo, se revela não apenas entre as personagens, mas também em digressões direcionadas ao espectador e a própria Alaíde. Parte da crítica entendeu este enfoque dialógico como uma característica teatral, esquecendo que tal escolha respeitava as idéias do texto original escrito por Nelson Rodrigues.

Com toda esta ênfase nos diálogos, a escolha do elenco foi essencial para que a obra funcionasse. O quarteto principal, formado por Simone Spoladore (Alaíde), Marília Pêra (Madame Clessi), Marcos Winter (Pedro, o marido) e Letícia Sabatella (Lúcia, a irmã), interpreta com absoluta perfeição os provocativos personagens criados por Nelson Rodrigues e revitalizados no elogiado roteiro da adaptação.

Embora pareça confuso e perdido em alguns momentos, o enredo proporciona um entendimento completo que ocorre de forma gradual. O desfecho revela que cenas e falas que a princípio pareciam desnecessárias apresentam funções específicas para a compreensão do enredo.

No entanto, é inegável que Vestido de Noiva seja um filme de difícil assimilação para um público acostumado ao padrão fast food das produções atuais. Fica evidente que a motivação do filme não é agradar o espectador, mas sim respeitar a narrativa original. E é exatamente esta suposta deficiência que se revela a maior virtude do filme, quando exorciza a imagem sensacionalista barata que outras produções construíram da obra de Nelson Rodrigues. Não há exageros, sexualidade gratuita (mesmo com um nu frontal da protagonista) ou palavrões desnecessários.

Algumas sequências chamam a atenção e podem chocar os mais puristas, apesar da delicadeza com que acontecem. Numa delas é mostrado a personagem Alaíde inconsciente após o atropelamento. Já no hospital, ela é despida pela equipe médica, para que possa ser higienizada e tratada. Um dos enfermeiros comenta, com uma naturalidade mórbida, sobre a beleza do seu corpo. Em outro momento, vemos numa cama a cortesã Madame Clessi e seu amante, um jovem de 17 anos. Após beijar o garoto, a cafetina comenta: “Você se parece tanto com o meu falecido filho”. Outro destaque é o belo desfecho final, onde se misturam as imagens do funeral e do casamento de Alaíde, ao som de trechos da Marcha Nupcial, intercalados com trechos da Marcha Fúnebre.

Enfim, se Joffre Rodrigues não consegue com Vestido de Noiva realizar a obra-prima que desejava ou se isentar totalmente de supostas influências teatrais, também não podemos ignorar a sinceridade e a engenhosidade com que o filme foi concebido, não se rendendo às convenções e às exigências do mercado.




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