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Especial Nelson Rodrigues no Cinema
Nelson com sabor de Jabor

“Herculano, quem te fala é uma morta”.

Toda Nudez Será Castigada
Direção: Arnaldo Jabor
Brasil, 1972.

Por Madson Hudson Moraes

Nelson Rodrigues adorava cinema - e isso influenciou sua dramaturgia. Dizia ter assistido a O Corcunda de Notre Dame umas 45 vezes (provavelmente a versão de 1939, com Charles Laughton, dirigida por William Dieterle). Negou por muito tempo qualquer tipo de influência do cinema em sua obra para admitir tempos depois: “Meu teatro tem algo de cinematográfico: ações simultâneas, tempos diversos”. Gostava de muitos atores da fase silenciosa do cinema e creditava ao cinema francês e italiano a frase “dois contos do vigário”. Alfinetou a Novelle Vague e acreditava no cinema brasileiro, mas só quando o Cinema Novo “desaparecesse até o último vestígio”.

Essa última frase foi dita pelo escritor durante a promoção do terceiro longa-metragem de Arnaldo Jabor, Toda Nudez Será Castigada (1972), inspirado na peça homônima de Nelson. Aclamado pela crítica e censurado depois, o filme de Jabor é a mais bem sucedida adaptação do dramaturgo. Assinando também o roteiro, Jabor mostra as sutilezas da classe média carioca sob o espectro do falso puritanismo e hipocrisia moral da sociedade. O longa-metragem representa também uma ruptura com o pensamento cinematográfico corrente da época. A proposta cinema-novista era fazer filmes mostrando as contradições da sociedade brasileira, utilizando uma linguagem adequada à situação social da época e colocando o povo e seus personagens como eixo central da trama – fiéis à cartilha do neo-realismo italiano. Começou a carreira como cineasta fazendo um curta-metragem chamado Circo (1965), sobre uma caravana de saltimbancos. O segundo filme, Opinião Pública, de 1967, é baseado na técnica do cinema verdade (documentava-se a vida enquanto ela acontecia, em som-direto). Jabor analisou como a classe média brasileira apoiou o golpe militar de 1964 com seu conservadorismo e ingenuidade quase vitorianas. Já Pindorama, de 1970, foi um retumbante fracasso de crítica e publico por seu estilo pictórico, repleto de alegorias que tentavam burlar a censura. Jabor, fiel às concepções de Nelson, querendo tocar nas reações afetivas e humanas, resolveu adaptar Toda Nudez Será Castigada. O roteiro era ousado: mudou o foco do personagem Herculano para a prostituta Geni, na explosiva atuação de Darlene Glória. O tango de Astor Piazzolla conferiu mais luxo à película, junto à fotografia meio tropicalista de Lauro Escorel.

O filme começa com Herculano, na ótima interpretação de Paulo Porto, chegando em sua casa à procura de Geni. Acaba encontrando um gravador e, ao ligá-lo, ouve a voz desesperada de sua amada: “Herculano, quem te fala é uma morta”. Pronto, está anunciado o drama rodrigueano. Esse início nos remete, de certa forma, a Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance de Machado de Assis, cujo narrador-defunto desfila sua história páginas adiante. Assim, Geni inicia o filme no papel do narrador-defunto que, em alguns momentos, vai descrever parte dos acontecimentos importantes. Herculano é de uma família tradicional, um homem puritano que só tinha tido uma mulher na vida e prometeu para o filho Serginho (Paulo Sacks) que jamais iria ter com outra mulher depois da morte da mãe deste. O irmão Patrício (Paulo César Pereio), que vive à custa do seu dinheiro, numa manobra de sobrevivência (ou sobre-sua-vivência de malandro), decide apresentar a Herculano a prostituta Geni, que às vezes faz bicos cantando bolero em inferninhos. Dentro de sua rigidez moral e católica, Herculano recusa. Mas Patrício foi esperto: colocou junto à mesa do viúvo uma fotografia de Geni. Após se embebedar, Herculano vai ao bordel, onde encontra a meretriz e passa a noite com ela. Entretanto, depois renega a ligação, indo embora. A relação entre os dois e o quadro moralista distinto fica evidente: de um lado, Herculano em remorsos por causa da promessa quebrada a Serginho e um homem de princípios que precisa sustentar diante das tias e do mundo moral que o cerca. Em um momento sentencia: “Mas, meu filho, eu sou católico”. Já Darlene estoura na tela e encarna a prostituta que comete o pior dos erros que uma pode fazer: apaixonar-se. Geni é o submundo, a mulher pública, como Herculano diz. A mulher que grita alto na rua, que oferece o corpo por dinheiro e que está apaixonada pelo viúvo. Herculano promete se casar com ela, mas para isto precisa fazer Serginho viajar porque este não aceita o pacto quebrado. Serginho logo descobre o romance e explode seu ódio interior. A partir daí a trama toma um rumo mais catastrófico que certamente vai torturar ainda mais Herculano.

Paulo Porto e Darlene Glória fazem jus ao urso de prata que o filme recebeu no Festival de Berlim, em 1973. Experiente em atuar em diversos gêneros do cinema brasileiro, Paulo Porto vinha de sua primeira e bem-sucedida atuação como diretor no emocionante Em família (1970), adaptado da peça de Oduvaldo Vianna Filho, drama que tratava da questão da velhice no Brasil. Dois anos depois de Toda Nudez Será Castigada, Paulo iria atuar em outro filme com Jabor, O Casamento, de 1975, mas sem o sucesso do filme anterior. Já Darlene alçou Geni à galeria dos principais personagens femininos do cinema nacional. Estreou na Rádio Cachoeira do Itapemirim cantando ao lado do então desconhecido Roberto Carlos. Miss da cidade em 1958, Darlene teve o mérito de passar por todas as fases do cinema brasileiro moderno – Cinema Novo, Cinema Marginal, Pornochanchada e Retomada. Mais ainda por participar de obras primas como São Paulo S/A (1965), de Luiz Sérgio Person e Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha. Em Toda Nudez será Castigada Darlene ganhou projeção internacional e foi premiada como melhor atriz no Festival de Berlim. Foi Paulo quem apresentou Darlene a Jabor. Como o cineasta estava procurando atrizes, fez um teste. Depois de três frases de Darlene, exclamou: “É ela, é a Geni!” Darlene vivia numa fase marginal e de drogas. Mas era de uma entrega total nas filmagens, quando, em diversas ocasiões, estava viajando no ácido. Em uma seqüência célebre do filme em que Herculano diz “Bate, Geni”, Jabor disse aos dois que queria uma cena bem sádica. “Viajando” nessa hora, Darlene mordeu o lábio de Paulo na hora de beijar que chegou a sangrar. Ele agüentou firme e o plano acabou sendo o que está no filme. É possível afirmar que a personagem Geni e a atriz Darlene talvez estivessem vivendo uma vida dupla: podia-se ver a prostituta Geni e ao mesmo tempo estar vendo a atriz Darlene Glória, tamanha a visceralidade e entrega ao personagem. Outro exemplo de como ficção e realidade misturavam-se na vida de Darlene naquele momento da carreira é a cena final, quando Geni descobre que Serginho acaba indo viajar com o bandido e sai chorando em volta das pilastras do aeroporto. A atriz tinha acabado de perder a irmã dois dias antes. Lágrimas que são verdadeiras em meio à irrealidade que o cinema permite criar.

O país vivia sob o signo do autoritarismo. O AI-5 ainda pipocava e a repressão política era cada vez maior. As atividades artísticas eram submetidas ao serviço de censura e não seria diferente com Toda Nudez. O filme foi um sucesso estrondoso de bilheteria com mais de três milhões de espectadores. O longa de Jabor causou uma espécie de dissensão política entre alguns cinemanovistas que chegaram a elaborar um manifesto afirmando que Cinema Novo não fazia sucesso, e sim crítica. Quando ia ser publicado no dia seguinte, a polícia entrou e retirou de cartaz por ordem da censura. Soldados entravam de metralhadoras para apreensão das cópias, isso em maio de 1973. Acontece que Toda Nudez Será Castigada era o representante oficial no Festival de Berlim daquele ano. Quando a notícia da proibição do filme no Brasil chegou ao festival, foi um escândalo. Aconteceu o que aqui foi relatado: o filme ganhou os prêmios de melhor filme e melhor atriz. Por causa da repercussão e dos prêmios recebidos, acabou sendo liberado. Foi o general Antônio Bandeira que decidiu proibir a exibição do filme em um despacho datado de agosto de 1973, ou seja, quase três meses após a estréia. Bandeira mandou que cortassem diversas cenas de Geni com os seios de fora, cenas em que Herculano e Geni aparecem no sofá acariciando-se e queria cortar a cena final do filme, o grande desfecho e que fez o clássico que o filme é.

A crítica da época classificou o longa como o único válido da presente série erótica, e, ao mesmo tempo, o rotulava como exemplo de vitalidade do cinema brasileiro. Vale lembrar que a pornochanchada encaminhava-se para o auge como gênero dominante naquele momento, e isso, talvez, tenha influenciado a crítica.

O filme conjuga elementos de variados gêneros e estilos cinematográficos, daí sua característica principal: ter um apelo popular com temática de alta profundidade. O melodrama rodrigueano em suas variações, o cinema documental (já experimentado com Opinião Pública), as comédias eróticas da época (o viúvo moralista com a prostituta impetuosa), a chanchada e o musical (com Darlene cantando boleros ou rodopiando, feliz, na rua e em casa) são elementos todos coesos. Toda Nudez será Castigada é um filme de libertação para o diretor. Um filme sobre pessoas, seus dramas, suas podridões, e não um filme de símbolos ou alegorias.




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