html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Especial Nelson Rodrigues no Cinema

Boca de Ouro
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Brasil, 1963.

Por Vlademir Lazo Correa

É curioso um filme como Boca de Ouro ocupar uma posição tão obscura e ingrata quanto o lugar em que ele sempre se encontrou. É um objeto estranho e totalmente alienígena na filmografia de Nelson Pereira dos Santos, em particular, e no cinema brasileiro em geral, e pouco citado mesmo quando o assunto são as adaptações de Nelson Rodrigues, sejam as direcionadas para a tela grande, ou as produzidas para os canais de televisão. Um pouco por motivos óbvios, pois a participação de Nelson Pereira no projeto foi a de um pistoleiro de aluguel: impossibilitado de rodar Vidas Secas por fortes chuvas que assolavam o Nordeste, realizou na mesma região um faroeste sertanejo (Mandacaru Vermelho, um dos seus trabalhos mais fracos) e aceitou o convite do astro Jece Valadão para dirigir a primeira adaptação para o cinema de um texto teatral de Nelson Rodrigues, na intenção de aproveitar o sucesso de Os Cafajestes, de Ruy Guerra, contando inclusive com a mesma dupla de atores (Jece Valadão e Daniel Filho). Uma fita nitidamente comercial, que Nelson Pereira só fez por grana, e que o próprio Valadão teve que dirigir (não-creditado) algumas cenas quando o cineasta voltou ao Nordeste para as filmagens de Vidas Secas. No entanto, o resultado ficou tão bom que provavelmente só não agrade aos que seguem e acreditam incondicionalmente na Teoria do Autor (que diz que o diretor deve ser responsável pela confecção completa de uma fita, desde a idéia original até a sua finalização, e que a mesma contenha todos os seus ideais estéticos, o que vai totalmente contra as circunstâncias em que Boca de Ouro se situa).

Com roteiro do próprio Nelson Pereira (que segue fielmente os diálogos coloquiais da peça original, bem-humorados e por vezes beirando o melodrama), Boca de Ouro é um filme policial rashomônico com toques noir (incluindo muito dos aspectos sórdidos e amorais que permeiam esse universo). Do clássico de Kurosawa, Rashomon, a história toma emprestada a idéia de um mesmo fato ser contado de maneiras diversas, com a sua cronologia desarticulada e na qual nenhuma versão se confirma integralmente na outra. Mas se no filme japonês são quatro pessoas (e até um fantasma!) que dão uma visão diferente da mesma história, em Boca de Ouro é uma única mulher (interpretada pela musa Odete Lara) que relata três versões contraditórias sobre a vida e personalidade de seu antigo amante, o bandido recém-falecido Boca de Ouro (Jece Valadão). As versões giram em torno de um crime ─ o assassinato de Leleco (Daniel Filho) ─, de acordo com as diferentes reações de ódio, amor e indiferença que a lembrança de Boca de Ouro desperta na mulher, e, a cada versão, detalhes fundamentais para a compreensão da trama são alterados, modificando o roteiro e a motivação dos personagens. Entretanto, o acontecimento em si não muda radicalmente: Leleco resiste em entregar sua esposa Celeste (Maria Lucia Monteiro, uma revelação, que infelizmente quase que não fez mais nada no cinema) ao chefão Boca de Ouro, rei do crime em torno das suas atividades como banqueiro do jogo do bicho. Leleco, precisando de dinheiro para o enterro da sogra, recorre a Boca de Ouro, que cobra um preço alto demais como pagamento da dívida: uma hora de amor com Celeste. Daí se encena entre os personagens uma batalha quase corporal pela imposição de suas vontades, da vontade de um contra a do outro, e a resistência que os mais fracos precisam articular diante do poder do mais forte, do mais rico, do bandido (A destacar também, o concurso de seios promovido por Boca de Ouro entre grã-finas da alta sociedade que o visitam, um lance digno e característico na obra do dramaturgo carioca).

O ápice dessa intriga é o longo encontro do triângulo amoroso no escritório da mansão do criminoso (mas não só ali), e esse episódio se desdobra em três fragmentos com pontos-de-vista distintos a partir dos diferentes estados de espíritos com que a personagem de Odete Lara (que vive no morro com marido e filhos), dividida entre o afeto e a raiva, relembra o antigo amante, manipulando as narrativas em seu longo e passional depoimento nas entrevistas concedidas ao repórter que a interroga. O modelo de outro clássico do cinema se insinua nesse sentido, pois são fortes os laços com Cidadão Kane, no jornalista que questiona os conhecidos de Charles Foster Kane na tentativa de solucionar o enigma de sua vida. Em Boca de Ouro também o chefe do jornal incumbe o repórter Caveirinha (Ivan Cândido) de investigar e correr atrás da ex-amante do protagonista para que se descubra um grande segredo qualquer relacionado ao Boca, algo sensacionalista que possa servir de manchete para estampar a capa do jornal do dia seguinte. E o próprio Boca de Ouro tem algo do magnata de Cidadão Kane, pois ele também nasceu pobre, mas enriqueceu por conta de seus crimes e de suas atividades ilícitas, tornando-se poderoso e violento com os que o rodeiam em sua mansão, sem falar no seu comportamento excêntrico e imprevisível, o que possibilita a Jece Valadão exercitar mais uma vez o seu tipo cafajeste e maquiavélico. Ao final, temos mais de uma versão sobre quem foram e o que fizeram Boca de Ouro, Leleco e Celeste e na figura do personagem de Odete Lara a constatação de que a verdade e a percepção podem ser maleáveis dependendo da emoção de quem dita a história.

Se tivesse sido realizado nos anos 70 ou 80, Boca de Ouro seria aclamado como uma obra-prima (ou quase), mas naqueles primeiros anos de Cinema Novo se cobrava um cinema engajado que não encontrava correspondência no texto de Nelson Rodrigues, e a maioria absoluta da crítica torceu o nariz para a sua realização. No entanto, permanece um dos exemplos mais brilhantes de narrativa não-linear utilizadas em nosso cinema, e seu sucesso de bilheteria foi um marco de uma boa fase de um cinema mais comercial da produtora carioca Herbert Richers (que produziu também o clássico O Assalto ao Trem Pagador), incluindo outras adaptações de Nelson Rodrigues que se seguiram a essa e que praticamente ninguém nos dias de hoje recorda: O Asfalto Selvagem (1964) e sua continuação Engraçadinha, Vinte Anos Depois (1966), ambas dirigidas por J.B. Tanko. Há também outras adaptações da obra de Nelson Rodrigues nesse período: Bonitinha, Mais Ordinária (1963, também com Odete Lara e Jece Valadão), o célebre A Falecida (1965), de Leon Hirszman, e O Beijo (1966), de Flávio Tambellini e também com Valadão. Todos esses formam a partir de Boca de Ouro o primeiro ciclo de adaptações de Nelson Rodrigues para o cinema (o segundo ciclo seria na década seguinte, após os sucessos das adaptações dirigidas por Arnaldo Jabor). O que confirma que se o cinema nacional da década de sessenta foi tão grande, o seu valor então não decorre somente dos movimentos do Cinema Novo e do Cinema Marginal, mas do cinema brasileiro como um todo, contando tudo que se fez no país naquele período, entre as mais diferentes escolas e vertentes. Quanto ao grande Nelson Pereira dos Santos, em 1990, foi convidado para refilmar Boca de Ouro numa versão atualizada, mas o cineasta não foi adiante no projeto por divergências na escolha do elenco (acabou que o diretor de TV Walter Avancini assinou uma readaptação muito fraca do original para o cinema). Não obstante, o Boca de Ouro original dos anos sessenta permanece como sério candidato à melhor adaptação cinematográfica do genial Nelson Rodrigues.



<< Capa