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Especial Nelson Rodrigues no Cinema


Bonitinha, mas ordinária ou Otto Lara Resende e o sexo com sentido
Direção: Braz Chediak
Brasil, 1981.

Por Nísio Teixeira, especialmente para a Zingu!*

Até hoje, ainda é possível ouvir comentários sobre o cinema nacional, dizendo que é tudo putaria ou sacanagem o tempo todo. Por trás do preconceito, uma possível verdade: a fase e as produções às quais o comentário se reputa, rotulada muitas vezes de pornochanchada, evidenciam um vigor e uma presença de produção e público, como talvez só nos recentes anos o cinema brasileiro tenta recuperar. Isso sem recorrer ao argumento de defesa mais fácil: por trás da aparente putaria e sacanagem, uma (nem sempre) sutil crítica social e política do Brasil.

Chediak, que já fez as suas “pornochanchadas”, insere de modo interessante suas adaptações das obras de Nelson Rodrigues nesse corpus do espírito do tempo do cinema nacional, graças ao tratamento de Doc Comparato, Gilvan Pereira e Sindoval Aguiar, este parceiro desde o primeiro longa, Os Viciados (1968).

Isso porque, o que François Truffaut uma vez afirmou sobre a filmografia de Hitchcock, na qual muitas vezes o “mestre do suspense” concebe cenas de amor como se fossem de crime e cenas de crime como se fossem de amor é um tratamento que, curiosamente, parece que muito se aproxima, a meu ver, também ao universo rodrigueano - de modo menos sutil, obviamente. Essa perturbadora oscilação entre um universo mórbido e sensual, muitas vezes no mesmo quarto ou no mesmo corpo é um ingrediente salutar das tramas do dramaturgo – cuja obra, não por acaso, vai ser apontada por Ismail Xavier como sendo a grande articuladora entre o teatro e o cinema nacionais a partir da década de 1960, quando a sexualidade aumenta e explicita sua potência dentro e fora das salas de cinema.

Assim, falar de Bonitinha, mas ordinária ou Otto Lara Resende é falar de uma das mais consagradas adaptações da obra de Nelson Rodrigues ao cinema, lançada em 1981. E entender em que medida o diretor consegue evidenciar o jogo entre vida e morte, sexo e devassidão, caráter e hipocrisia, redenção e pessimismo. Seria a primeira incursão de três do diretor na obra de Nelson – Álbum de família lançado ainda em 1981 e Perdoa-me por traíres é de 1983. Muito menos a sua primeira experiência de transposição de um dramaturgo visceral ao cinema: Chediak já havia exorcizado Plínio Marcos quase uma década antes com Navalha na carne (1969) e Dois perdidos numa noite suja (1971). A própria versão de Chediak para a peça de Rodrigues não foi a primeira: Jece Valadão pegou parte da grana que ganhou com Boca de Ouro (1963) e, naquele mesmo ano, como fez no filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos, deu as coordenadas para levar Bonitinha, mas ordinária para o cinema, de novo tendo Odete Lara ao seu lado.

É claro que, por isso mesmo, o primeiro elemento forte que emerge de Bonitinha, mas ordinária é, evidentemente, o texto de Rodrigues e, nele, sua constante referência à suposta frase “o mineiro só é solidário no câncer” do escritor Otto Lara Resende, que acabou tornando-se o subtítulo da peça. (A biografia de Ruy Castro sobre Nelson Rodrigues aponta a ocorrência da frase durante 47 vezes na peça. No filme, eu me esqueci de contar....).

A frase é chave para que Edgar (José Wilker), um ex-contínuo de uma empresa, aceite a proposta de seu patrão, Heitor Werneck (Carlos Kroeber), para se casar com a filha deste, Maria Cecília (Lucélia Santos). Edgar, que no fundo é enamorado da vizinha Ritinha (Vera Fischer) se vê diante do dilema da frase: só numa situação extrema o homem pode ter caráter. Fora disso, estaria fadado ao Deus-dará.

Daí Edgar deve decidir se aceita a proposta, intermediada por Peixoto (Milton Moraes), genro e assessor de Heitor, e se torna um grã-fino hipócrita. Caso contrário, permanece pobre, mas digno. Nessa retomada temática do pacto a que foram submetidos Jó ou Fausto, não há o preâmbulo divino ou diabólico. Deus e o Diabo estão longe da terra do sol e a escolha de Edgar terá que se balizar entre sua própria consciência e os “canalhas de hoje e da véspera”, para ficarmos com uma das boas frases de Peixoto, ele próprio um canalha vil e vendido, no dizer do próprio Heitor “No Brasil, todo mundo é um Peixoto”.

Assim, desnecessário dizer que boa parte do elenco evidencia com maestria a força das palavras de Nelson Rodrigues. Mas, obviamente, não se trata só de um bom exercício de declamação, mas de uma interpretação reforçada pelo olhar voyeur da câmera de Chediak, que chega a se assumir explicitamente quando aparecem coadjuvantes importantes como o louco arrebentado na mata da Tijuca (“Eu também quero! Eu também sou filho de Deus!”), o coveiro do cemitério, além do inescrupuloso patrão da mãe de Ritinha. Seguindo a estrutura da peça, Chediak também opta pelos flashbacks e pelos falsos flashbacks para, gradativamente, utilizá-los como elementos de revelação da verdadeira personalidade das duas personagens principais: voltar atrás para revelar o que está por detrás. E, nestes, as cenas do estupro de Maria Cecília sob a chuva em dia de sol e, fora deles, os golpes de navalha na carne ao final se destacam nessa submissão explícita e sensorial do espectador à terrível chave rodrigueana do prazer mórbido. Na conclusão, os personagens reparam pela primeira vez que o sol no horizonte talvez sugira, por oposição, uma sensação de esperança. Mas a escolha de Chediak não podia ser outra: a imagem é a de um sol, mas de um sol que se põe.

*Nísio Teixeira é jornalista e redator da Filmes Polvo.



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