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Especial Medos Privados em Lugares Públicos

A longevidade de Resnais

Por Júlio Simões, especialmente para a Zingu!*

Naquela segunda-feira à tarde, dia 13 de julho de 2009, o movimento no HSBC Belas Artes parecia completamente normal. Nas bilheterias, nenhum aviso era dado pelas moças responsáveis por cobrar a entrada. Nas telas de plasma que exibiam a programação das próximas horas, nenhuma informação adicional era vista. Nos cartazes expostos, nenhuma novidade era percebida. Mesmo assim, aquele era um dia especial, pois o filme Medos Privados em Lugares Públicos, de Alain Resnais, completava dois anos ininterruptos em cartaz na cidade de São Paulo. Sem dúvida, uma marca a ser comemorada.

Quando cheguei ao cinema, porém, estranhei a falta de qualquer referência ou movimentação sobre o assunto. Afinal, não era preciso mais do que vontade (além de um sulfite, uma caneta Pilot e um pouco de noção de marketing) para avisar aos poucos que aguardavam sentados nos sofás ou no café do cinema que o filme estava fazendo "aniversário" naquele dia. Poderia até não levar nenhum espectador a mais para a sessão, mas valia como homenagem. Em todo caso, não pude sugerir a ninguém a idéia, pois o relógio já marcava mais de 16h30 e não havia sequer tempo para comentar qualquer coisa com a moça da bilheteria, pois o filme começaria em cinco minutos. Rapidamente (não havia fila), comprei meu ingresso e, meio desconfiado pela normalidade, segui em passos rápidos até o local de exibição.

A sala é pequena, comporta apenas 97 pessoas. De tão escondida, é preciso contornar corredores e descer uma escada para chegar a ela. Fica praticamente no porão do cinema, fundado em 1956 como Trianon, mas que já teve outros dois nomes antes de receber, há seis anos, o patrocínio de um banco internacional, tornando-se assim HSBC Belas Artes. Intitulada Carmen Miranda, é a segunda menor do complexo de cinco salas, perdendo apenas para a vizinha Mario de Andrade, com 88 e também "esquecida" no porão. Todas, sem exceção, homenageiam ícones das artes brasileiras, sejam eles da música, pintura, arquitetura, escultura, cinema ou literatura.

Já na porta da sala, aguardo o apressado bilheteiro aparecer, cortar meu bilhete com as mãos e liberar a minha entrada, o que leva alguns minutos. Quando isso acontece e ultrapasso a porta, vem a surpresa: a sala está quase cheia, não com a totalidade dos lugares ocupados, mas certamente com público bastante superior ao de um dia normal. Eis ali, de forma espontânea e feita por quem realmente admira o filme, a homenagem pela data comemorativa. A todos aqueles que dedicaram algumas horas para ver o filme (ou rever, como no meu caso), restava somente começar a exibição.

Quando as luzes se apagam e os primeiros flocos de neve começam a cair sobre a romântica Paris, os espectadores são levados a uma atmosfera de fácil identificação. A princípio, são apenas alguns personagens vivendo a vida simples do dia-a-dia, mesmo que haja uma considerável diferença no estilo de vida francês e brasileiro. Com o avanço da trama, porém, percebe-se que todos têm problemas pessoais, mais especificamente de relacionamento afetivo. A partir daí, o que se desenrola são situações engraçadas, dramáticas e, sobretudo, de superação das dificuldades enfrentadas pelos personagens. Tudo isso com um tratamento de classe, com a sensibilidade e elegância típica de Alain Resnais. É, acima de tudo, um filme afetuoso.

"Quando assisti ao filme, fiquei tocado pela maneira delicada e carinhosa como Resnais trata os personagens. Embora todos tenham problemas e dificuldades e não seja um filme "feliz", ele trata com muito carinho os personagens. Coisa rara no cinema de hoje", analisa André Sturm, cineasta e responsável pela administração do cinema que exibiu Medos Privados em Lugares Públicos em todos os dias dos últimos dois anos. "Resnais é um dos cineastas que construiu a linguagem cinematográfica como vemos hoje. Um talento como poucos, e ao mesmo tempo generoso", completa ele, fã confesso do cineasta francês, que mesmo aos 87 anos segue dirigindo filmes (Les Herbes Folles, sua última criação, tem estréia prevista para o fim deste ano).

No dia 13, Sturm não pode acompanhar a sessão que marcou os dois anos de exibição contínua por estar fora de São Paulo. Mesmo assim, revela que dias antes se surpreendeu com o sucesso que o filme ainda faz. "Um número impressionante foi nesse último feriado de 9 de julho. Mesmo depois de dois anos em cartaz, o filme lotou a sala e até deixou gente de fora", exclama o exibidor, que revela ter visto o filme apenas três vezes por inteiro, mas vários trechos outras tantas vezes. Sobre o sucesso durante estes dois anos, Sturm tem algumas teses. "Claro que o gosto pessoal é importante, mas foi o público que deixou o filme em cartaz. Às vezes achava que tinha acabado e no final de semana tinha sessões cheias novamente", explica.

A falta de qualquer comemoração por parte do cinema no dia em que Medos Privados... completou dois anos de exibição também foi explicada por André Sturm. "Ficar um ano em cartaz já era motivo de celebração, por isso fizemos o debate. Até para tentar entender 'o que será que levou aquele filme a ficar um ano em cartaz?'. Já no segundo ano, o debate ficaria meio repetitivo", analisa o cineasta. Sobre o terceiro "aniversário" do filme, então, Sturm tem sérias dúvidas de que aconteça. "Gostaria, mas acho muito difícil. Dois anos já é uma marca histórica..."

*Júlio Simões é jornalista é autor do livro Cine Marabá - O Cinema do Coração de São Paulo, que pode ser adquirido através de contato pelo site




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