html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Dossiê João Silvério Trevisan

Pedaço de Mim, de João Silvério Trevisan

“Escrito com minha alma e meu corpo,
este livro faz parte do meu eu.
(...) Como uma garrafa à deriva no mar,
eu lhes entrego agora este outro pedaço de mim”.

Por Madson Hudson Moraes

Falar em homossexualidade sempre constituiu um tabu. Raciocinar sobre os movimentos de minorias, inclusive o homossexual é, além disso, temática proibitiva que rende contendas calorosas, pendendo, na sua grande maioria, para o cômico. Para isso, basta assistir aos programas humorísticos que abordam maciçamente o assunto sempre sob a ótica do riso e da alegria descomedida. Se formos mais além, é impossível citar um corpo literário-homossexual ou literatura homoerótica no Brasil. Dito dessa maneira, o diálogo se torna impossível quando imaginamos sua relação com o todo da literatura brasileira de Andrades e companhia. Mas há exceções e até bem antigas. O romance naturalista Bom Crioulo (1895), do cearense Adolfo Caminha, que talvez tenha sido pioneiro ao abordar o homossexualismo no cânone tupiniquim. Por ser considerado um escritor maldito por tocar em um tema maldito (homossexualismo na marinha), acabou esquecido. Até o poeta Carlos Drummond de Andrade publicou seu livro de poemas eróticos O amor natural só após a sua morte, temendo que suas poesias fossem confundidas com pornografia.

O duo homossexualismo/literatura sempre esteve presente nos textos da Antiguidade Clássica. Até hoje se discute sobre a homossexualidade na Grécia Antiga. Entre os romanos, os ideais amorosos eram equivalentes aos dos gregos. O dramaturgo inglês Oscar Wilde (1854-1900) passou apuros por sua homossexualidade. Autor de O Retrato de Dorian Gray, seu único romance, casou-se, o que não impediu de ter casos com homens. Se o leitor adora coincidências, vai perceber que o dramaturgo foi condenado a dois anos de prisão por “cometer atos imorais com diversos rapazes” no mesmo ano da publicação do livro de Adolfo Caminha. Isso sem citar intelectuais de diferentes épocas e nacionalidades como Thomas Mann, Proust, Rimbaud, Caio Fernando de Abreu, Allen Ginsberg, García Lorca, Pier Paolo Pasolini, entre outros. A lista é grande. Entretanto, são personagens de movimentos artísticos com importância fundamental para a cultura do século XX. Todas essas analogias nos estimula a questionar: existe limite entre a literatura e a sexualidade? Entre o desejo, a criação e a arte?

Tentar delimitar até que ponto o homossexualismo interfere na literatura é um dos temas tratados no livro Pedaço de Mim (Editora Record, 352 págs, 1º edição, 2002) do escritor, jornalista, cineasta, roteirista e tradutor João Silvério Trevisan. Nos 31 artigos e ensaios do livro, escritos entre 1978 e 2001, Trevisan fala de literatura, cinema, política, e, claro, homossexualismo. Ativista do lendário folhetim Lampião da Esquina (primeiro veículo de imprensa a tratar não apenas da temática gay, mas das minorias em geral) criado em fins da década de 1970, o escritor logo avisa que o livro oferece pedaços de si. Daí o título, retirado da música de Chico Buarque. A obra constitui-se de reminiscências e ilusões. Algumas, de fato, envelheceram com o tempo, como o papel das esquerdas na política; outras, como a relação literatura/objetivo e finalidade/morte apenas ganharam mais com as reflexões de Trevisan. Aliás, três prêmios Jabutis atestam o vigor e consolidação de sua prosa e ensaística.

O livro faz parte da Coleção Contraluz, dedicada à discussão sobre a sexualidade presente na arte e na literatura. Trevisan transcende a homossexualidade e a leitura não se torna um manifesto, tampouco libelo de alguma causa. Os tempos do Lampião já se foram. O que há é uma poética do devaneio, uma reflexão e aprofundamento do eu interior. Ou eus interiores que ele continuamente exteriorizou ao longo de trinta anos de atividade literária. Os textos confessionais sugerem uma liberdade maior e inventiva com a criação narrativa. O elemento da homossexualidade está presente no discurso, mas não interfere na sua ficção e nem é banalizado; acrescenta, sim, uma carga lírica e confessional presente nos questionamentos íntimos comuns a todos. Aproximando a literatura da ensaística, deixa de lado o comedido. Logo apresenta-se dizendo que, no Brasil, ser escritor e homossexual o coloca num grupo de risco. Sabendo desses riscos, Trevisan não se furta a caminhar na contramão de uma cultura patriarcal, machista e que repugna suas minorias. Não há meio termos nos ensaios. Vida e literatura caminham juntas. Em um dos ensaios, ele analisa a conduta esquerdista dos anos de chumbo e deixa claro sua posição ao fundar o Lampião da Esquina: estava duplamente na marginalidade. Primeiro por ser contra a ditadura instalada; segundo, por dar voz às minorias em contradição com o pensamento esquerdista que pregava a luta revolucionária e a conscientização das massas como forma de mobilização social.

Outro aspecto interessante que Trevisan não deixa passar em um dos ensaios é o desabafo que faz com o fato de ser abertamente homossexual. Isso o teria tornado, na mídia, apenas homossexual, estigmatizando-o e deixando de lado seu papel como escritor. Villa Lobos ficava indignado quando ia fazer concertos em outros países e o apresentavam como o compositor brasileiro Villa Lobos. Beethoven e Chopin dispensavam apresentações de nacionalidade, dizia ele. Não que o maestro negasse suas origens. Mesclou música erudita com sons naturais, folclore, percussão popular e sua obra clássica está presente até hoje. O que o incomodava era o tom extremamente exótico que o adjetivo ‘brasileiro’ adquiria. Trevisan sabe que sua obra estará sempre na corda bamba de um reducionismo rasteiro, tentando enquadrá-la em um possível confessionário do homossexualismo contemporâneo. Talvez seu único equívoco é afirmar em um dos textos que o próximo filão da literatura no país seja o da literatura homoerótica. Mas, mesmo quando sua militância em favor dos direitos homossexuais esbarra na sua proposta literária, sua prosa não fica deficiente; se enriquece, sobretudo, em ensaios do livro como Literatura em desequilíbrio (pág. 45).

Pedaço de Mim expressa a preocupação com os mistérios universais: mistérios da morte, mistérios de amar, mistérios do acaso, enfim, mistérios. A criação e os achados poéticos vão revelando-se enquanto busca desvendar as funções da criação literária. Os eus do paulistano versam sobre a dor e o prazer da escrita, sentimentos esses que julgamos bons ou ruins dependendo das circunstâncias. Em outro ensaio do livro, Trevisan observa que as pessoas escrevem porque não cabem dentro de si mesmas. Está aí o resumo de sua estética. Não escreve, querendo a toda instante, ser porta-voz do mundo gay. Já o fez tempos atrás com a monumental obra homoerótica Devassos no Paraíso (1985). Escreve porque não sabe como extravasar suas impressões e porquês. Escreve para quebrar seus espelhos interiores. E Trevisan sabe que, como todo bom escritor, dói quebrar a si mesmo.




<< Capa