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Lançamentos
Por Vlademir Lazo Correa

Encarnação do Demônio
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 2008.

O cineasta José Mojica Marins já foi tema de dossiê na Zingu! em uma edição histórica na revista, com resenhas de praticamente todos os seus filmes, incluindo o recente Encarnação do Demônio, mas nunca é demais voltar a esse filme agora que está sendo lançado em dvd para venda direta aos colecionadores (desde o começo do ano esteve disponível apenas para locação), e, além disso, trata-se de um filme em que merece se retornar com frequência, até por que talvez mesmo com os inúmeros textos acerca de Encarnação do Demônio, é possível que a sua exegese ainda esteja longe de se esgotar, o que se pedem outras tantas revisitas e reflexões, inclusive para incentivar aos que não puderam ver nos cinemas que comprem ou ao menos aluguem esse precioso dvd.

Quando lançado nos cinemas, Encarnação do Demônio (o fechamento da trilogia iniciada com os clássicos À Meia-Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver) dividiu opiniões, especialmente por se chocar com as grandes expectativas de como seria a recontextualização nesse começo de milênio da figura de Zé do Caixão (tão preso a uma visão de um passado mais ou menos remoto no inconsciente coletivo de nossa memória cinematográfica), numa ansiosa espera por saber como um personagem de clássicos do terror tupiniquim dos anos sessenta interagiria nos dias de hoje. Realmente é estranho ver Zé do Caixão (o sádico e iconoclasta que desafia as convenções sociais e religiosas e demais crendices populares) envelhecido e perambulando na cidade grande nos tempos atuais. Á parte uma sequencia inicial bastante admirável tecnicamente (o movimento de câmera no corredor em direção à cela, na cena em que Zé do Caixão está por ser libertado da cadeia), no começo tem cara de um medíocre filme policial brasileiro, um tanto por seguir rigorosamente o contexto da delegacia, policiais e a vida urbana noturna de uma grande cidade, com tudo o que essas particularidades delineiam, como o excesso de palavrões e a opressão da policia, características que de imediato podem desagradar quem esperava uma recriação fiel demais dos antigos filmes

Mas à medida que o terror vai se impondo na tela, Encarnação do Demônio nos conquista e convence cada vezes mais, recuperando (senão totalmente, pelo menos em grande proporção) o clima dos filmes do diretor dos anos 60 e transportando-o para o século XXI. A narrativa é muito bem costurada, apresentando um desfile de imagens plasticamente belíssimas (e por vezes, memoráveis), com suas cores fortes e de grande impacto visual (como a representação do purgatório, em que Zé do Caixão, após atravessar um lago de sangue, é recebido por um ser demoníaco interpretado por Zé Celso Martinez Corrêa). É ao longo da projeção que vai se mostrando muito eficiente e até sensacional a idéia de colocar a policia nada simpática como os antagonistas de Zé do Caixão (enquanto este, com seu séquito de seguidores bizarros, ainda busca, dessa vez na grande metrópole, a mulher ideal que possa lhe dar um filho).

No final das contas, o balanço geral é bastante positivo, oscilando entre o brilhantismo, o exagero e a tosquice, com Mojica vencendo com folga o desafio de mais uma vez fazer uma releitura tupiniquim do gênero terror, agora em tempos de atrocidades como Jogos Mortais e O Albergue. Por sinal, mesmo contando com uma produção cara para os nossos padrões, Encarnação do Demônio não abre mão do estilo eminentemente simples e radicalmente artesanal de Mojica Marins, o que confere um poder visual que vai na contramão de quase tudo que se tem feito nos filmes de terror e suspense dos últimos tempos.

Na maioria das obras do gênero, há uma espécie de relação sadomasoquista entre filme e espectador, na busca de um excesso de realismo das cenas mais fortes e violentas, para que o masoquismo seja celebrado com mais regozijo e satisfação pelo público. Num filme como Encarnação do Demônio é tudo diferente: Zé do Caixão é sádico, mas o filme não o é. Existem profusões de sangue, mutilações, mãos e cabeças decepadas, torturas cruéis, corpos suspensos por ganchos no teto, etc., mas é tudo artesanal demais, e é ai que existe um charme nos efeitos visuais que não sejam tão perfeitos. É como se nos lembrassem que estamos diante de um truque, da materialização de uma fantasia. A beleza do cinema é saber que a magia provém de um truque, que não necessita ser perfeito. Em oposição às tão perfeitas cenas de horror do cinema contemporâneo, em que a computação gráfica acaba com esse encanto, fazendo a fábula parecer realidade (e não um conto de terror, como Encarnação do Demônio), o que é contraproducente. Quanto mais real se torna essa mágica, menos encantador é tudo.

Em contrapartida, o estilo de Mojica Marins abre mais espaço para a nossa fantasia, para nosso complemento e contribuição pessoal. A sua assumida simplicidade (o que para os seus detratores são “falhas” inadmissíveis) é justamente o que nos remetem ao caráter fantasioso dos efeitos visuais, completando a experiência do filme, ao invés de dominá-la e esmagá-la. Uma simplicidade que faz com que outros valores se imponham, como o roteiro, a direção, os atores... É o que nos permite sonhar, usar a imaginação para preencher as “falhas”. Uma espécie de resistência diante de uma tendência do cinema de horror moderno em que a computação gráfica parece vedar todas as lacunas, nos entregando algo tão hiper-realista onde não há lugar para o encanto e a fantasia. Por tudo isso, mais do que uma forma de driblar os baixos recursos de produção (o que nem é o caso desse novo filme do diretor), o resultado final de Encarnação do Demônio é conseqüência, sobretudo, de uma opção estética: a arte de José Mojica Marins.



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