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Dossiê André Luiz Oliveira
Doce Amargo
Direção: André Luiz Oliveira e José Umberto
Brasil, 1968.

Por Gabriel Carneiro

Doce Amargo narra a história de um vendedor de pirulitos da capital baiana. O que interessa aos diretores, porém é sua trajetória diária. Os pirulitos são feitos, ele os coloca no suporte e sai pelas ruas. Porém, não é uma história comum, singela, sobre um trabalhador jovem. Doce Amargo é um filme que se intensifica enquanto ilusão – a trajetória do vendedor está em dois planos: o real e o da mente de rapaz -, e sua vocação está justamente em absorver aspectos da contracultura e usá-la, não para expor a miséria (como teria feito o Cinema Novo), e sim para evidenciar como plano físico e pessoal de um indivíduo.

Dirigido por André Luiz Oliveira e José Umberto, cineastas que seriam importantes representantes do Cinema Marginal baiano, ainda em começo de carreira – é o primeiro curta-metragem de André Luiz Oliveira e o terceiro de José Umberto -, Doce Amargo já mostra sinais dos traços que iriam invadir suas carreiras no ano seguinte (André Luiz realizaria Meteorango Kid e José Umberto, Vôo Interrompido). A denúncia e a crítica estão na irreverência, muito particular no curta-metragem em questão, filmado em 16mm, por remeter aos estigmas da sociedade conservadora. O moleque vendedor de pirulitos é, em sua cabeça, abordado e agredido por clérigos e policiais, por representantes da classe média, visto com desprezo. Tais inserções, que seriam recorrentes no filme posterior de André Luiz, em nenhum momento se anunciam como tal – o que vemos são tomadas em diferentes ângulos mostrando e alternando diferentes realidades, da qual se insere a que seria fruto da cabeça do rapaz, mas em nenhum momento descobre se é imaginação ou memória, simples e pura.

O terreno fértil do inconsciente na película está nesse sabor estranho da batalha diária e custosa de vender algo em Salvador. O lúdico do pirulito, doce de criança, reverbera no transe, e seu suporte renasce e adquire novos valores. A mudança do caráter do objeto é circunstancial e representativa de uma mente atordoada, atormentada pela crueza, violência e desprezo a que é submetido. Muito próximo à realidade do garoto protagonista, as possíveis alucinações só ampliam o leque do desbunde – o rapaz vendedor não é um signo de realidade comum, é individual e debochado; sua realidade não se aplica.

Permeado por diversas cenas documentais da cidade – que talvez tenham confundido os jurados do Festival JB Mesbla, que concedeu ao filme o prêmio de melhor documentário -, o curta deságua no mar soteropolitano. Lá, o vendedor se rebela e se acha. Seu instrumento de trabalho é a arma que carrega para estigmatizar sua vida, seu intuito. Despe o suporte, jogando os pirulitos ao mar, e encontrando nele sua real vocação – o tempo a realidade metralhada conversam o rapaz irreverente: qual o futuro senão o do delírio?




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