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Dossiê André Luiz Oliveira

Entrevista com André Luiz Oliveira

Parte 4: Louco por Cinema e a redenção

Por Gabriel Carneiro
Fotos: Dênis Arrepol

Zingu! - Como nasceu Louco por Cinema?

André Luiz Oliveira – Poeticamente, eu diria que o filme nasceu de uma reflexão “bem humorada” sobre a longa estadia exilado da vida no cinema. E também da necessidade de expressar uma experiência vital acontecida comigo na década de setenta. A principal delas foi a minha prisão por porte de maconha em 1973, no Rio de Janeiro, e a condenação a um ano de cadeia. Cumpri quatro meses, sendo que os dois últimos em um manicômio judiciário. Essa foi, talvez, a mais difícil e transformadora experiência da minha vida.

Z - No filme, o personagem Lula seria o mesmo Lula de Meteorango Kid?

ALO - Os filmes estão imbricados, por isso os personagens são os mesmos. Na verdade, não foi uma opção e sim uma decorrência natural.

Z - Quando foi fazer Louco por Cinema, cogitou chamar o Lula [Antonio Luiz Martins, ator de Meteorango Kid]?

ALO - Até que por um instante cheguei a cogitar, mas logo descartei. Vi que não era boa idéia a associação tão explícita com Meteorango Kid, embora esteja subtendido que o personagem é o mesmo.

Z - Qual a relação entre você e o personagem Lula?

ALO - Quem me conhece, sabe muito bem que Lula, personagem dos dois filmes, sou eu e vice-versa. Não há como negar. Assim como também sou um pouco de todos os personagens secundários e coadjuvantes, como se fossem egos de uma só pessoa (o advogado picareta, o traficante frustrado, a bicha mediúnica, etc). No Louco por Cinema, a trajetória do personagem é mais claramente sobreposta à minha biografia. Meus filmes falam de mim, das minhas inquietações e angústias existenciais, do meu humor e da minha realidade interior. Não faço filmes de fora pra dentro. Mesmo A Lenda de Ubirajara, que era uma história de um autor clássico da literatura, havia um índio rebelde lá dentro que precisava se aculturar e foi o que fiz: dei-lhe voz, corpo, imagem.

Z - O que seria o louco?

ALO - O louco no mau sentido é o estigmatizado. Aquele que por força das circunstâncias externas está vivendo uma outra vida, estrangeira à sua própria, sua verdadeira natureza. É o sujeito que se identifica com a personagem que lhe imputam e vive infeliz sem o contato profundo consigo mesmo, é o domínio do ego e o esquecimento do ser.

Z - Louco seria carregar um estigma que não te pertence? Seria refutar o ‘marginal’?

ALO - Exatamente, porque ele (eu) não fez a opção em ser marginal, foi rotulado de marginal. Até aí, tudo bem. O grave é o estigma que aprisiona, impedindo a mudança, o crescimento, a criatividade. Assim aconteceu com Lula, o personagem do Louco por Cinema, que não estava no manicômio judiciário por opção, ele estava preso. Sendo que, na verdade, ele só queria ter a oportunidade de ser ele mesmo e a elaboração da sua libertação durou 20 anos.

Z - Você sente que se libertou dessa loucura, desse estigma?

ALO - Não há essa libertação dessa maneira simplista. O que houve foi uma compreensão e aceitação de mim mesmo e em conseqüência dessa consciência, uma paz de espírito há muito buscada. É o que Jung chama de “individuação” na psicologia analítica. Eu apenas tomei consciência desse problema que estava latente e latindo dentro de mim e com isso me liberei. Do ponto de vista mais esotérico, posso dizer também que exorcizei um encosto indesejado. Tudo isso porque não sentia que eu era inteiramente eu, ou seja, estava vivendo sob o comando daquele personagem-ego mítico, o herói intergalático dos anos sessenta. Ele era parte de mim, não o todo. É mais ou menos isso que Lula (personagem) diz para Eugênio (personagem) no final do filme Louco por Cinema quando este sai do corpo daquele. “Finalmente, agora eu sou eu mesmo!”. O importante é você ser todos os personagens com consciência deles e não apenas um, inconsciente - mesmo que seja genial.

Z - E como surgiu o livro Louco Por Cinema - arte é pouco para um coração ardente?

ALO - O livro é onde conto tudo isso. Foi muito importante para mim escrevê-lo, não somente como catarse, mas porque revela e aprofunda o que está metaforicamente no filme.

Z - Qual sua relação com o Festival de Brasília?

ALO – Historicamente é muito boa. Coincidentemente, todos os meus três filmes de longa-metragem participaram do Festival e foram premiados. Isso muito antes de eu vir morar aqui. Meteorango Kid em 1969, A Lenda de Ubirajara em 1974 e o Louco por Cinema em 1994.

Z - Como você se define profissionalmente?

ALO - Não sei lhe dizer, não sei me definir profissionalmente. Não sei me enxergar com esse distanciamento. Sempre procurei não me identificar com essa imagem de profissional de cinema, para que pudesse ficar livre na busca de outros caminhos de expressão, talvez por isso a dificuldade. Acho que agora, aos 61 anos, está se delineando uma figura com a qual me identifico, que não existe profissionalmente. É a personagem que mais gosto em mim mesmo e que vai ficar bem nítido no livro que estou escrevendo, Sagrado Segredo, em que o cinema é apenas mais um episódio em minha vida e não a totalidade como parece.

Z – E pessoalmente?

ALO - Um buscador... Talvez fique muito abstrata esta resposta para uma revista de cinema. Essa é uma questão que sempre tive dificuldade: como falar das minhas experiências no campo do autoconhecimento psicológico e da busca da espiritualidade em situações e campos tão adversos como o campo artístico e midiático? Não é essa natureza de resposta que se espera de um cineasta. E aí eu me dividia e me calava. Alejandro Jodorowsky, o genial cineasta/tarólogo/cartunista chileno, me disse uma vez que sempre teve esse tipo de problema. Talvez, para não ter que responder esse tipo de pergunta, o cineasta Conrard Rooks, de únicos dois filmes geniais, Chappaqua [1966] e Siddhartha [1972], tenha se escondido entre o Himalaia e a Tailândia por todos esses anos. Confesso que ainda não encontrei o tom adequado para responder a essa pergunta.

Z - Quais outras atividades você desenvolve(u) paralelamente ao cinema?

ALO - Quanto a atividades artísticas e profissionais, a música é a principal, além de escrever um livro e um texto para teatro. Fora do campo artístico formal - tudo é artístico -, fiz de tudo um pouco. Fui editor de um tablóide alternativo em Guarujá, dono e projecionista de cinema em Campos de Jordão, astrólogo, cantor, sitarista, etc. Para mim, o importante era, e ainda é, não permitir o acomodamento, o automatismo, o comando estável do ego, a estagnação que é a prisão da alma. É vital estar sempre experimentando e para isso é necessário mudar. Isso significa arriscar, recomeçar sempre, permitir a presença de algo que não domino, algo que é maior do que eu, enfim, tenho necessidade de, ao arriscar-me em uma linguagem ou atividade nova, revelar a mim mesmo certas fragilidades, limitações e virtudes inusitadas e isso só é possível assumindo os riscos da autodescoberta.

Z - Como você se sente ao ver seus filmes sendo lançados em DVD? Ainda mais se comparado aos inúmeros filmes de grandes cineastas que nunca viram esse formato?

ALO - Não sei disso não. Achei que meus filmes estavam atrasados com relação a todos os que você citou. [Como exemplo, citamos: Walter Hugo Khouri, Carlos Reichenbach, Guilherme de Almeida Prado, Jean Garrett, Nelson Pereira dos Santos, Ivan Cardoso, Roberto Santos, Ozualdo Candeias, Roberto Pires e muitos outros.] A maioria dos filmes já está em DVD. Meteorango Kid está muito atrasado! A Lenda de Ubirajara, por exemplo, ainda não está em DVD e o Louco por Cinema foi um dos últimos.

Z - Sagrado segredo é sobre o que?

ALO – O filme é sobre a Via Sacra, Paixão de Cristo na cidade de Planaltina no DF. É sobre a inquietação de um diretor de cinema angustiado diante da liberdade da arte e a emergência de um caminho espiritual. Ainda sem previsão de estréia. O filme conta uma parte das minhas inquietações e buscas espirituais ligadas ao gnosticismo cristão. No livro, eu conto tudo, inclusive onde estava e o que estive buscando e encontrando durante a longa estadia fora do cinema.

Z - Você tem novos projetos?

ALO - Muitos. Nem todos na área de cinema. Estou finalizando dois documentários em vídeo, Antes Arte do que Tarde, sobre o multi-artista Bené Fonteles, e Retratos Brasileiros - Agonia e Êxtase, sobre o cineasta baiano Edgard Navarro. No cinema de longa-metragem, tenho muitos roteiros guardados. Mais próximos de possível execução estão três ficções de longa-metragem: Viva o Povo Brasileiro, do livro de João Ubaldo, A Alma que tirou o corpo fora, uma comédia musical minha - um filme em plano médium -, e Ecos do Silêncio, uma ficção sobre o autismo. São muitos os projetos de documentário em vídeo, sendo que o principal deles é Índia/Brasil – Um sonho distante uma presença sutil, que fala da minha relação com a Índia e a sua presença sutil na cultura brasileira desde Cabral. Fora do cinema, como músico, pretendo produzir e lançar o terceiro CD e DVD da trilogia Mensagem, de Fernando Pessoa - já realizei Mensagem 1 e 2. Vou gravar meu primeiro CD e DVD como sitarista e continuar atendendo crianças autistas como co-musicoterapeuta. Tem mais um livro em preparação e um novo texto para teatro.

Parte 3



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