html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Dossiê André Luiz Oliveira

Entrevista com André Luiz Oliveira

Parte 1: Começando no cinema

Por Gabriel Carneiro
Fotos: Dênis Arrepol

Zingu! - Como surgiu seu interesse pelo cinema?

André Luiz Oliveira - Não sei. Acho que foi uma conspiração do Destino. Um cruzamento de duas realidades, uma objetiva externa e outra subjetiva interna. A objetiva foi que lá pelos 14 anos encontrei uma câmera de filmar Pahiallard Bolex 16mm dentro do guarda roupas do meu pai - ele a recebera de uma dívida de um italiano comerciante de madeira. Comecei a filmar coisas em casa, como a família na praia e o desfile da minha irmã nas olimpíadas - os únicos takes que me lembro fazer. Daí para fazer meu primeiro curta-metragem foi mais fácil e isso aconteceu aos 19 anos. Do ponto de vista subjetivo, é que eu tinha muita dificuldade em me adaptar à realidade objetiva do mundo: estudar, compromisso social de família, certos comportamentos típicos da idade, etc. Para fugir disso, vivia dentro do cinema. Eu era um sonhador inveterado e para dar vazão aos meus delírios, vivia escrevendo poesias e sonhava em fazer alguma coisa fora do mundo real. Acho que o meu interesse maior pelo cinema veio daí, da necessidade de fugir da realidade grosseira que me agredia com suas regras, padrões e hipocrisias.

Z – E o que te levou de fato a fazer filmes?

ALO - Comecei a fotografar por influência e orientação do fotógrafo Vito Diniz, a revelar e ampliar as próprias fotografias em casa, até que entrei num curso de cinema do professor Walter da Silveira e Guido Araújo. Conheci então o José Umberto Dias, que já tinha feito um curta-metragem chamado Preâmbulo e que eu tinha gostado muito. Convidei-o para fazermos um filme [Doce Amargo]. Começamos a costurar uma história de um vendedor de pirulitos de rua. Chamamos um amigo para fazer o papel principal, consegui o dinheiro para a película com meu pai, fiz rifa, vendi objetos pessoais, fiz a fotografia, fomos para o Rio de Janeiro, montamos o filme, o inscrevemos no Festival de Cinema JB Mesbla e ganhamos o prêmio de Melhor Documentário. Aí então não tinha mais volta, abandonei a Faculdade de Ciências Econômicas [na UFBA] no segundo ano e me entreguei a escrever o roteiro de um primeiro longa-metragem que seria Meteorango Kid, o Herói Intergalático.

Z - Você assistia aos filmes baianos do Ciclo de Cinema Baiano, do Roberto Pires, do Glauber Rocha?

ALO - Assisti a Deus e o Diabo na Terra do Sol que não me pegou tanto quanto Terra em Transe. Este, sim, balançou-me e certamente me fez aspirar um dia fazer cinema. Os filmes do Roberto Pires só vim a assistir muitos anos depois, já morando no Rio de Janeiro. Apesar de não ter me tocado fortemente por nenhum dos seus filmes, gostava de quase todos. Ele era um bom artesão do cinema, tinha um estilo acadêmico, muito honesto com o que queria dizer e um respeito enorme pelo o público. Roberto é pouco reconhecido, mas o considero um cineasta muito importante para a cinematografia baiana.

Z – O que você assistia então nos anos 60?

ALO - Os anos sessenta são compridos: como sou de 1948, eu teria entre 12 e 22 anos, portanto, te digo que assistia a todo tipo de filme. Quando era muito garoto, gostava, especialmente, de filmes de aventuras, principalmente os de “cowboys” de quinta categoria. Os filmes marcantes que ficaram na memória até hoje e com que, de certa forma, identifiquei na minha curta filmografia sinais dessa memória foram, em primeiro lugar, Ulisses [1954, dir.: Mario Camerini] - um filme que assisti aos doze anos de idade e que curiosamente assistindo a A Lenda de Ubirajara, identifiquei cenas muito perecidas e uma mesma emoção -, Duelo de Titãs, Scaramuche, Os Brutos Também Amam, Matar ou Morrer, e muitos outros, quase sempre filmes classe B de diretores desconhecidos. A partir dos 14, 15 anos, comecei a me interessar muito por filmes que tinham mulheres bonitas, pernas e peitos à mostra. A fase da masturbação no cinema. Eram filmes com Sophia Loren, Marilyn Monroe, Brigitte Bardot, Silvana Mangano, Claudia Cardinale, Mylène Demongeot, Pascale Petit, cujos títulos e diretores interessavam bem menos do que as protagonistas. Na fase dos 17, 18, eu comecei a assistir a filmes de arte projetados pelo professor Walter da Silveira, em sessões matinais no cine Guarani, na Bahia. Foi aí que conheci os filmes classe A, os filmes do Luis Buñuel, do Jean-Luc Godard, do Federico Fellini, do Andrzej Wajda, do Roberto Rossellini, do John Ford, do Orson Welles, e de muitos outros - todos esses filmes que mais tarde se tornariam os clássicos da história do cinema. Nessa fase, assistia a todos os filmes brasileiros sem distinguir direito o que gostava ou não, sem critérios estéticos ou outro interesse, assistia porque era viciado em cinema. O filme brasileiro que mais me marcou foi Terra em Transe.

Z - Como era fazer cinema na Bahia dos anos 60?

ALO - Os cineastas que haviam feito algum filme já estavam no Rio de Janeiro. Nós éramos alguns poucos jovens fisgados pelo cinema ainda sem saber direito o que fazer da vida. Havia o curso livre de cinema dos professores Walter da Silveira e Guido Araújo, na Universidade Federal da Bahia, e freqüentávamos as aulas e sessões. Isso era fazer cinema? Não, mas foi um começo para mim.

Z - Você já conhecia o Alvinho Guimarães antes de começar a fazer cinema?

ALO - Sim, de vista e de nome. Alvinho era um dos mais agitados diretores de teatro da cidade. Conheci Alvinho superficialmente, mas gostávamos um do outro. Tínhamos vontade de sermos amigos, demonstrávamos essa simpatia com efusividade, mas nunca tivemos oportunidades de estar mais que meia hora em cada ocasião que nos encontramos, portanto não chegamos a ser amigos. Eu, mais jovem, admirava seu trabalho no teatro e o via como alguém importante nas artes da cidade. Ele, por sua vez, sendo um rebelde por natureza, me olhava também com admiração por Meteorango Kid. Nunca falamos sobre cinema.

Z - Como conheceu o José Umberto?

ALO - No curso de cinema do professor Walter da Silveira e Guido Araújo. Gostei do filme dele, Preâmbulo, e o chamei para fazermos um filme, que veio a ser Doce Amargo. Tivemos um problema na época de Doce Amargo [André Luiz, segundo seu livro, inscreveu Doce Amargo no Festival JB Mesbla como sendo só dele] e ficamos mais de duas décadas magoados sem falar um com o outro e sem nos vermos. Essa coisa de não encontrar os amigos foi uma marca na minha vida porque sempre me isolei demais. Depois que fiz Louco por Cinema, na maturidade, trocamos e-mails duros, nostálgicos, amigáveis e reatamos relações cordiais. Quando nos conhecemos, eu era muito jovem, não tinha tempo, paciência, minha vida corria perigo e eu tinha que me adiantar. Não tínhamos mais assunto, nem profissional, nem existencial, e a relação de amizade momentânea adormeceu. Isso não quer dizer que não poderemos um dia reatar com a criatividade da época de Doce Amargo.

Z - E o Vito Diniz?

ALO - Conheci Vito Diniz quando tinha mais ou menos 17 anos. Ele havia acabado de chegar da Itália, onde vivera por 10 anos como fotógrafo profissional e estava com dificuldade de se readaptar no Brasil, mais ainda à Bahia. Foi uma amizade imediata. Dez anos mais velho que eu, Vito era generoso e me ensinou tudo relacionado à fotografia e cinema, sobretudo uma forma diferente de olhar. Fiz assistência de câmera e fotografia para ele em algumas viagens pelo interior da Bahia e, a partir dessas experiências, fiz a fotografia de Doce Amargo. Vito também foi fundamental para a realização de Meteorango Kid, dando a ele uma qualidade técnica fotográfica essencial.

Parte 2



<< Capa