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A regra do jogo versus a grande ilusão

Por Filipe Chamy

Inácio Araujo escreveu certa vez que o cinema sofre com “uma perversão só sua”, a de instantaneamente consagrar filmes por seu teor polêmico ou por tratar de um assunto considerado importante. Não me parece acertado restringir essa característica ao cinema, mas o crítico com certeza sabia do que falava.

O que explica o sucesso quase obrigatório de fitas sobre o nazismo? Essa fixação por temas alegadamente relevantes, o cinema não como arte mas como registro. Um filme que trata de um tema histórico é, necessariamente, superior a uma comédia despretensiosa ou um drama familiar. Talvez seja uma obsessão por “engrandecer-se” com uma obra artística, o desejo inexplicável e fantasioso de sempre querer uma “mensagem”. Não se discute a importância das coisas triviais, pois naturalmente um retrato de Hitler é mais útil que certos problemas transitórios da vida. Para essas pessoas, explica-se.

Não é de se admirar, portanto, a rejeição que certos títulos ainda encontram entre determinados públicos: se A grande ilusão é mais facilmente compreensível e fascinante que A regra do jogo, não é porque o primeiro filme seja melhor que o segundo. Sendo ambos duas obras-primas de Jean Renoir, estão no mínimo em situação de igualdade. Mas é que A grande ilusão trata de guerra, prenuncia o segundo conflito mundial, discute a vida em tempos de batalha, enquanto A regra do jogo é uma farsa ora cômica ora trágica que versa majoritariamente sobre máscaras sociais e situações do ridículo social que habita nosso cotidiano. É muito mais simples, e confortável, falar que gosta de um filme tão nobre e tão importante “politicamente” como A grande ilusão do que confessar-se admirador de uma experiência um tanto mais exigente quanto A regra do jogo. Isso corre desde sempre, em qualquer país. As obras mais discutidas são quase sempre aquelas que comentam um tema “importante”. Qual a relevância de uma comédia provinciana de Eric Rohmer? De um terror de Dario Argento? Muita, mas para o cinema; aparentemente, nenhuma para as pessoas.

No Brasil, o fenômeno é particularmente vasto: vivemos numa época em que o cinema volta ao semi-panfletarismo de uma elite podre falsamente preocupada com as mazelas sociais do país. Assim, um trabalho medíocre como Meu nome não é Johnny, a despeito de sua realização pífia, consegue enorme visibilidade com o debate capenga sobre drogas ilícitas. Esse também foi o mote do sucesso de outra farsa do cinema nacional: Tropa de elite. Filmes pobres, de estética monótona, direção frouxa; mas que repercutiram bem mais que os últimos longas de Claude Chabrol, por exemplo — que no fundo é outro mestre, na tradição de Hitchcock e Fritz Lang, a moldar a qualidade de seus feitos com base em seu conhecimento de cinema, e não em um assunto oportuno que é garantia inequívoca de aceitação quase unânime —, mal e mal foram resenhados em blogs de cinéfilos.

Cada vez mais se elogia uma obra de arte não pelo que ela traz, mas pelo que é. Assim, O grande ditador não é excelente por ser um trabalho genial de Charles Chaplin, por apresentar absurda perfeição em todas as áreas de criação cinematográfica, mas por ser um filme feito “para desafiar o Hitler”, o que o torna, logo, importante. O leitor, filme em cartaz até dias atrás (se ainda não permanece em algumas salas), é um filme de nazismo, tema capital, relevante, bem mais que Queime depois de ler, comédia boba dos irmãos Coens que não ensina nada sobre a vida, não traz nenhuma moral bonitinha embutida e não permite uma conclusão simples sobre algo real. O que dita a qualidade da obra é o tema, quanto mais atual, político, polêmico e baseado em fatos reais, melhor será o filme. O cinema agoniza em alguns meios em que é tratado simploriamente como um meio de registrar um acontecimento real, e não como uma arte fascinante sempre livre para se aprimorar.



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